“A leitura da palavra é sempre precedida da leitura do mundo.” – Paulo Freire
Porque mudamos?
As teorias fundamentais da literacia em saúde e da ciência comportamental mostram que mudamos quando adquirimos mais competências, quando conseguimos compreender o complexo mundo da saúde, quando temos acesso aos recursos necessários para mudar, quando temos oportunidade para essa mudança e, claro, quando existe motivação. São muitos os fatores que influenciam a mudança.
Não basta apenas ler. É preciso vivenciar o mundo para o compreender. É necessário retirar do mundo a sua representação simbólica e mental para que, por fim, possamos compreender e agir.
Mas há mais. Precisamos de contextos adequados para apoiar a mudança e de um estado de vontade que permita que essa pequena intenção de mudança de comportamento se transforme numa ação concreta que possibilite a modificação do comportamento.
Vivemos numa sociedade hipermedicalizada. Para percebermos o alcance desse fenómeno, basta olhar para os dados sobre o consumo de ansiolíticos, que colocam Portugal quase no topo da lista na Europa. Portugal é o segundo país da OCDE com maior utilização de antidepressivos.
Somos sociedades hiper-visíveis, com a necessidade de estar quase sempre online, nas redes sociais, exibindo uma hiperpoderosa sensação de eficiência. Refiro-me ao conhecido síndrome de FOMO (Fear of Missing Out, ou “Medo de Perder Algo”), frequentemente associado à presença nas redes sociais, e que pode gerar mais ansiedade, entre outros problemas, como a depressão.
Somos sociedades hiperativas, pois estamos sempre a produzir algo: serviços, produtos, ideias, muitas das quais de base pouco científica ou retiradas de sites sem grande credibilidade, o que acarreta o risco de cairmos em fake news perigosas. Como alertam os Serviços Partilhados do Estado, vivemos uma “infodemia” de notícias falsas, que ameaça a segurança e a saúde dos cidadãos. Os profissionais de saúde, por isso, têm responsabilidades acrescidas.
Nesta confluência exacerbada da vida, a vontade (ou volição) é frequentemente empurrada para ações que podem não ser as mais racionais ou estruturadas. Cada um de nós assume e deseja, por impulso, certos comportamentos que muitas vezes não estão baseados na cognição. Gao e outros (2021) afirmam que “equilibrar a gratificação instantânea e a gratificação adiada, que é mais vantajosa, é importante para otimizar a sobrevivência”.
Comportamentos impulsivos e comportamentos geradores de violência
Muitas vezes, vivemos comportamentos impulsivos, que nos arrastam para uma modelação influenciada por outros, com quem julgamos partilhar afinidades, mas que, no fundo, pouco têm a ver com o nosso perfil ou com a autoestima que desejamos. Navegamos na “onda gigante” da massificação do que os outros fazem, e as decisões sobre a nossa saúde podem, assim, ficar em risco.
Também no campo dos comportamentos associados à violência doméstica, a Comissão para a Igualdade de Género reporta que, em 2023, foram acolhidas na Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica 1.296 pessoas, das quais 50,8% eram mulheres, 47,5% crianças e 1,7% homens. Estes comportamentos ocorrem, na sua grande maioria, em relações familiares próximas. Podemos pensar em todos os fatores que desencadeiam estas situações, muitos dos quais estão relacionados com comportamentos.
Fazer o que os outros fazem só porque pensamos que é melhor
A decisão de tomar o antibiótico recomendado pela amiga ou vizinha, de fumar porque o amigo começou a fumar, de comer alimentos pouco saudáveis porque aquele grupo também o faz, ou de ficar no sofá porque não encontramos ninguém para nos acompanhar no exercício diário.
E assim vivemos, progressivamente, enevoados pelos hábitos dos outros, que nos parecem ser os que mais reforçam o nosso ego, tantas vezes fragilizado pelas dificuldades do mundo, ou simplesmente porque queremos afirmar-nos como pertencentes a algum grupo ou “tribo”.
Nessa secreta necessidade de ser “como os outros”, pois os outros nos parecem melhores, mais felizes ou mais realizados, muitos acabam por imitar comportamentos errados.
É a consciência de que talvez sejamos melhores do que aqueles que tentamos imitar que pode ajudar-nos a controlar os hábitos negativos – como fumar, beber, jogar, consumir drogas, ou mesmo em comportamentos sexuais de risco, como ter relações sem proteção – e a perceber que o aspeto físico não deve ser definido pela imagem de outros nas redes sociais.
Deixar de viver para repetir estereótipos de beleza ou atitudes quase perfeitas é um ato de coragem, de grande cognição e de autocompreensão, pois esses comportamentos podem frequentemente enredar-nos em sofrimentos silenciosos e desesperantes.
Quando não há identidade, não se pode fazer frente ao que somos, porque não sabemos quem somos para poder gerir essa mesma identidade.
A realidade tem mostrado que o ser humano, na sua dimensão holística, é mais do que a soma das várias partes. Para se ajustar ao mundo – frequentemente desigual – o ser humano exige aquilo que, muitas vezes, não lhe é oferecido. A formação do ser deve ser um investimento contínuo ao longo da vida. Ensinar desde os primeiros passos cognitivos a identificar e gerir as emoções, por exemplo, provavelmente evitaria muitos casos de bullying nas escolas, mobbing no trabalho e, claro, violência em várias situações (relacionamentos, escolas, saúde, entre outros).
Da autorregulação à vontade firme de controlar as decisões da vida. E como as mulheres ainda têm um longo caminho a percorrer
A solução parece passar por uma forma mais eficiente de autorregulação, que envolva conhecimentos, capacidades e atributos mais robustos, permitindo decisões mais acertadas num mundo tão complexo. E é aí que entra a literacia em saúde, que, em poucas palavras, nos indica um caminho para uma maior autorregulação dos nossos comportamentos e, na verdade, para um maior poder e controlo da nossa vida.
Um conceito relacionado à promoção da saúde é o empoderamento. Empoderar significa ter o controlo da própria vida e a capacidade de participar ativamente nos processos que conduzem a uma melhor saúde, em suas várias dimensões.
Empoderar significa que não se tem, à partida, controlo sobre uma determinada situação, mas adquire-se essa capacidade.
Burns, em 2020, destacava que as mulheres estão sub-representadas na área da saúde, com poucas em posições influentes, de liderança ou em cargos acadêmicos de topo, em comparação com os homens. A autora também salienta que as mulheres são menos frequentemente as autoras principais de publicações científicas de impacto ou participantes no desenvolvimento de diretrizes de prática clínica. Estas falhas em termos de igualdade de género têm amplas implicações, impactando, segundo Burns (2020), os pacientes, a ciência, as instituições e os sistemas de saúde.
É necessário, portanto, mais empoderamento, mais e melhores comportamentos para que as pessoas consigam racionalizar vários aspetos das suas vidas e se tornem mais conscientes dos atos que defendem a sua saúde física, mental, social e até espiritual.
Comportamento é comportamento. Não é um resultado
Michie et al. (2016) afirmam que, ao projetarmos um comportamento, é preciso ser específico, para não confundir comportamentos com resultados ou com as suas influências. Nesse processo, é essencial focarmo-nos em comportamentos específicos, pois estes: 1) ajudam a pensar de forma mais tangível; 2) tornam os resultados mais precisos; e 3) permitem identificar as barreiras que devemos remover para alcançar um comportamento mais saudável.
Os autores também refletem sobre a nossa tendência de focar-nos nos resultados que desejamos alcançar, ao invés de nos concentrarmos nos comportamentos que precisamos de mudar. No quotidiano, estamos mais habituados a pensar em resultados (na vida pessoal e profissional) do que em comportamentos, pelo que mudar esse foco pode ser um desafio. A ciência comportamental que os autores desenvolvem oferece as ferramentas necessárias para essa transformação.
Quando não há competências, não há compreensão
As competências conferem às pessoas um conhecimento mais amplo, assim como capacidades, atributos e atitudes pessoais face aos desafios da vida, especialmente no que diz respeito à saúde e ao bem-estar.
A capacidade de tomar decisões está intimamente ligada à compreensão dessas decisões, sendo o uso adequado dessas competências um reflexo dessa compreensão. Quem não compreende pode agir, mas o fará de forma impensada, sem uma base racional ou consistente para a mudança.
Uma compreensão incorreta ou deficitária do mundo pode levar a comportamentos negligentes ou inapropriados, especialmente por parte de quem tem algum poder nas relações familiares, como cuidadores ou educadores.
É na família que se molda o perfil de atuação futura da criança e do jovem, não esquecendo, claro, o papel fundamental das escolas.
Conclusão
A literacia em saúde é a chave para um maior entendimento do outro, para uma maior compaixão e para a capacidade de ajudar os outros a compreender. Esse esforço é fundamental, especialmente começando com os mais jovens, para que as sociedades se tornem, de facto, mais fraternas, mais justas e mais compreensivas, permitindo decisões que afetam toda a saúde numa perspetiva biopsicossocial.
Compreender faz bem, e a literacia faz bem à saúde.