Nas últimas três décadas, Marta Leandro, têm-se dedicado ao voluntariado na área dos direitos humanos, no apoio aos sem-abrigo e a refugiados e, mais recentemente, no domínio do ambiente – em particular nas organizações não-governamentais de defesa do Ambiente (ONGAs) Quercus e URTICA.
Licenciada em Relações Internacionais e pós-graduada em Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação, foi professora, jornalista (especializada em Ambiente), assessora de imprensa e atualmente exerce funções de representação internacional no sector das telecomunicações.
Em Portugal, o direito a um “ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado” encontra-se constitucionalmente consagrado no art.º 66º da Constituição. Um direito humano que, na prática, é tantas e tantas vezes atropelado, em especial por políticos, autarcas, gestores e decisores com enormes responsabilidades na sua defesa!
A violação do nosso direito a um ecossistema equilibrado e sustentável é diária e reiterada e vai desde o que pode parecer uma decisão menor – por exemplo, as “podas” municipais que constituem autênticas mutilações e colocam em causa a saúde e a longevidade das árvores – às grandes decisões de poderosas empresas com interesses económicos e estratégicos globais, que despudoradamente poluem há mais de meio século a uma escala planetária, como é o caso das empresas de petróleo e gás natural.
Sendo a Quercus, como o seu nome indica, uma associação conservacionista, ou seja, dedicada em particular à conservação da natureza e à promoção da biodiversidade, a sua missão assume hoje em dia uma particular relevância: sabemos que os chamados “serviços do ecossistema”, isto é, os serviços gratuitos que nos são fornecidos pelo ecossistema natural (atmosfera, solos, oceanos, aquíferos, plantas, animais e minérios, entre outros) foram contabilizados como perfazendo mais de metade do produto interno bruto (PIB) mundial, um valor que ascende a cerca de 40 milhões de milhões (biliões) de euros. Um generoso contributo do qual os humanos usufruem graciosamente sem que a maioria sequer tenha disso consciência!
Ao apresentar em maio do ano passado a Estratégia da União Europeia para a Biodiversidade até 2030, a Comissão Europeia (CE) reconheceu que o mundo já perdeu cerca de 3,5 a 18,5 biliões de euros por ano em serviços do ecossistema, de 1997 a 2011, estimando-se que cerca de 5.5 a 10,5 biliões de euros por ano sejam afetados pela degradação dos solos. A necessidade urgente de reverter a perda da biodiversidade, fator que contribui decisivamente para a crise ambiental, climática e até pandémica que o mundo enfrenta, deveria enformar toda a produção legislativa e a ação dos Governos.
Emergência climática, um desafio maior que a Humanidade
Em Novembro de 2019, a poucos dias de iniciar funções como presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen prometeu, no Parlamento Europeu, que o combate às alterações climáticas seria a estratégia para o crescimento da UE e afirmou a ambição europeia de se tornar o primeiro continente neutro em carbono, até 2050.
No entanto, sabemos que as emissões de carbono (CO2) e de outros gases com efeito de estufa (GEE) se acumulam na atmosfera por períodos entre 12 e 100 anos. É assim que, embora as emissões carbónicas de GEE tenham descido no último ano, devido à paralisação económica provocada pela pandemia de covid-19, os níveis de partículas por milhão (PPM) continuam a subir.
No dia 3 de Abril de 2021, ultrapassámos mesmo um marco preocupante: pela primeira vez na história da Humanidade, o nível de CO2 acumulado na atmosfera atingiu as 420 PPM, de acordo com o registo do Observatório Mauna Loa, localizado no Havai. Recorde-se que, há uma década, o nível médio se situava em 394 PPM. No entanto, face ao níveis médios pré-industriais, que rondavam os 280 PPM, é genericamente considerado como seguro o valor de 350 PPM, dos quais nos encontramos consideravelmente longe. Concentrações acima do valor de 450 PPM, segundo os cientistas, dão origem a eventos climáticos extremos, como secas, cheias, incêndios florestais, tornados e tempestades cada vez mais violentos e frequentes, e ao aumento da temperatura média acima dos 2 graus, valor a partir do qual os efeitos do aquecimento global se podem tornar catastróficos e irreversíveis.
Lei europeia do Clima e Greta, a miúda que viu mais longe
Chega a ser constrangedor constatar que uma adolescente que aos 15 anos, em 20 de Agosto de 2018, deu início a uma greve escolar (a célebre “Skolstrejk för klimatet“) frente ao Riksdag, o Parlamento da Suécia, tendo desde então conseguido o feito notável de mobilizar nas ruas 6 milhões de jovens e adultos num único dia, em mais de 100 países, reclamando o direito a um futuro sustentável, tenha passado a ser tratada com tanta deferência por todos os líderes mundiais, que anseiam pela sua aprovação e por aparecer ao seu lado perante as câmaras.
Mas Greta Thunberg não lhes dá tréguas. Não só lhes aponta a ignorância e a hipocrisia da sua praxis face ao que os cientistas nos dizem há décadas, como não hesita em considerar que os seus planos, metas e medidas são inconsistente com o Acordo de Paris e pouco ambiciosos face à necessidade imperiosa de reduzir as emissões carbónicas globais a um ritmo pelo menos 3 vezes superior ao atual – não esquecer que o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), da ONU, alerta que a redução de GEE, a nível mundial, tem de ser de 7,6% ao ano –, garantia de que a estabilidade climática será alcançada.
O IPCC também nos diz que a meta da neutralidade carbónica, a nível mundial, deveria ser 2044 e não 2050 (em linha com o aumento da temperatura média no máximo até 1.5 graus). Ou seja, a Europa e os países mais industrializados deveriam lá chegar no máximo até 2040, como a rede de ONGs Climate Action Network (CAN), que a Quercus integra, defende.
“Rendição” perante a ameaça das alterações climáticas, foi o que Greta apontou aos planos da CE, quando uma embaraçada Von der Leyen a convidou há um ano a pronunciar-se face ao projeto de Lei europeia do Clima. E acusou mesmo a UE de “fingir que pretende assumir a liderança climática, mas continuar a construir e a subsidiar infraestruturas fósseis”.
A nova Lei do Clima deverá ser apresentada, no âmbito da Presidência Portuguesa em curso, até ao dia 22 de Abril, de acordo com o prometido pelo Ministro do Ambiente e Acão Climática. Entre nós, recorde-se que a Assembleia da República declarou, em Julho de 2019, que vivemos uma emergência climática e ambiental que coloca em causa a própria sobrevivência da humanidade. António Guterres, Secretário Geral das Nações Unidas exortou todos os Estados a reconhecerem essa mesma situação de emergência, ao qual o Governo não se mostrou contudo sensível, considerando ser um gesto meramente “simbólico”.
Em 2019, o secretário-geral da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) Mohammed Barkindo, classificou o movimento fundado pela jovem, Fridays for Future, de ser “talvez a maior ameaça à nossa indústria”. Mas a ameaça ao nosso futuro comum não é Greta. São as alterações climáticas e o estado de negação em que os principais decisores mundiais ainda vivem.
Novo PRR irá de novo privilegiar o betão?
Vemos que o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que o Executivo se encontra a finalizar e irá enviar a Bruxelas, numa versão reformulada, foi já preliminarmente “chumbado” pela CE, exatamente porque trata problemas emergentes ou urgentes, em especial a crise climática, com receitas obsoletas. No entanto, António Costa insiste e já afirmou publicamente que não pretende desistir de velhas e malfadadas fórmulas, leia-se construir novas estradas, pontes rodoviárias em áreas protegidas fronteiriças ou repetir, no Alto Alentejo, o desastre do Alqueva, privilegiando práticas agrícolas intensivas – destruidoras de habitats em larga escala e contaminadores dos recursos hídricos e dos solos – e a vertente turística.
O Governo perdeu também uma oportunidade para investir de forma convicta numa alternativa eficiente e sustentável, sobretudo no que respeita ao transporte internacional: uma rede ferroviária rápida e eficiente, conectada às redes transeuropeias de alta velocidade – não esquecer que Lisboa é hoje uma das poucas capitais europeias sem ligação ferroviária a outras capitais. Não esquecer também que a aviação e o transporte marítimo continuam de fora do Acordo de Paris ou a beneficiar de licenças de emissão de CO2 gratuitas, o que constitui uma clara vantagem competitiva e um favor político face a meios de transporte bem mais sustentáveis e que se justificam para percursos de curto-médio curso.
Renováveis são cruciais para descarbonizar a economia
Para descarbonizar a economia, ou seja, todos os sectores de atividade com impacto nas emissões de GEE – em especial os transportes, energia, indústria transformadora, edifícios, agricultura e resíduos –, priorizando a eletrificação, o recurso às energias renováveis é absolutamente essencial. Com a sua extensa costa marítima e abundantes horas anuais de sol, Portugal é um país com condições excecionais para investir no campo da energia eólica e solar (térmica e fotovoltaica). Porém, estamos atrasados e as orientações políticas na matéria pecam muitas vezes por tardias, pouco transparentes e ainda menos visionárias.
A aposta no chamado hidrogénio “verde” e nas baterias de lítio, que permitirão enormes ganhos em termos de armazenamento energético tem, pois, de ser equacionada. Mas permitir que a mineração seja feita sem um prévio e rigoroso planeamento e sem uma estratégia conduzirá a alienar para o exterior as mais-valias económicas que a descarbonização pode trazer a Portugal – garantindo a autonomia energética do país e até a exportação – e a deixar entre nós o ónus da poluição e destruição paisagística.
Por isso a Quercus tem defendido que a exploração de minerais, designadamente do lítio, deve ser liminarmente interdita em áreas protegidas e classificadas, tais como parques e reservas naturais, zonas de Rede Natura 2000 ou de reserva ecológica e agrícola nacionais (REN e RAN). Assim, afigura-se-nos incompreensível que o Governo continue a emitir licenças de prospeção em zonas ecologicamente sensíveis ou sem ter em conta as populações locais que se manifestam em total oposição aos projetos de mineração.
A grande vitória é que, nos últimos anos, a produção de energia a partir de fontes renováveis passou a ser mais barata do que a sua concorrente fóssil, tendência que tende a aprofundar-se, e por esse motivo temos de exercer uma enorme pressão pública para acabar com os subsídios públicos ao carvão, petróleo e gás natural, que os mantêm artificialmente competitivos.
Empregos para o clima
A revolução tecnológica e energética já em curso conduzirá, inevitavelmente, ao fecho de indústrias, mas também à criação dos chamados “empregos verdes” ou “empregos para o clima”.
Nos EUA, onde existem dados disponíveis, vemos que as indústrias renováveis criaram, até 2015, dez vezes mais empregos que a indústria fóssil. Mas para assegurar o sucesso da transição climática, as questões sociais têm de ser plenamente acauteladas. As populações mais pobres e vulneráveis são já hoje as principais vítimas das alterações climáticas.
Por isso a palavra equidade tem de estar sempre na mesa das negociações, se não quisermos assistir em Portugal ao caos social de manifestações como a dos “coletes amarelos” em França. E também aqui o Governo não pode ser equívoco: como Sines, Matosinhos ou a TAP já mostram, têm de ser os grandes poluidores a pagar a transição climática. Não quem labora nessas empresas ou o cidadão comum. Não esqueçamos que, só em Portugal, as empresas de petróleo e de gás fóssil continuam, todos os anos, a beneficiar entre 600 a 800 milhões de euros, em subsídios e isenções fiscais.
Ainda vamos a tempo?
Esta década será decisiva! O principal desafio é a falta de tempo. Neste momento estamos, tal como no terramoto de Lisboa de 1755, “resvés Campo de Ourique”… nós ainda estamos em Campo de Ourique, mas prestes a tombar para o outro lado, onde se vislumbra uma cidade destruída e em escombros!