Com 39 anos, Cuca Roseta é uma das vozes que regeneraram o fado para as novas gerações, dando-lhe uma nova roupagem fazendo jus à sua identidade e verdade. Começou naquela que é a escola e o primeiro palco de muitos fadistas, o Clube de Fado, onde teve a oportunidade de conhecer Gustavo Santaolalla, músico e compositor argentino vencedor de dois Óscares o qual produziria o seu primeiro álbum. Desde então, Cuca nunca mais parou de cantar, mesmo em ano de pandemia. Em 2020, a fadista editou um álbum de homenagem a Amália Rodrigues e deu concertos num autocarro itinerante e em hospitais, como forma de agradecimento aos profissionais de saúde.
Maria Isabel Rebelo Couto Cruz Roseta é um nome que, à partida, pode passar despercebido à maioria dos portugueses mas que se refere a uma das vozes mais proeminentes da música portuguesa, sobretudo no fado diz respeito. Aos 39 anos, Cuca Roseta faz parte de uma geração de artistas que deu novos novos rumos à mais tradicional canção portuguesa. Ainda assim, a viagem até ao reconhecimento, do público e dos seus pares não foi sempre linear e desprovida de dúvidas ou percalços. Nascida numa família em que a música era “uma constante” – o avô era um “excelente pianista” e a avó tinha uma escola de dança – e onde todos cantavam, Cuca nunca se destacou particularmente em termos de voz, o que a levou a encarar a música como um hobby.
Paralelamente e porque “o saber não ocupa lugar” (como diz o seu pai), dedicou-se à formação académica, tendo passado pelos cursos de Direito, de Psicologia e de Marketing, sendo que cada um deles reflete, de alguma forma, aspetos da sua personalidade: “Adorei o curso de Direito, o de Psicologia é dom e paixão. A grande característica da minha personalidade é a paixão pelo comportamento humano, sempre fui muito observadora e sempre passei muitas horas a refletir sobre experiências, atitudes e sentimentos. O marketing, por sua vez, foi mera curiosidade.”
Durante os estudos continuou a alimentar a paixão pelo fado, cantando-o e investindo na formação em música. Um dos momentos mais importantes do seu trajeto foi a entrada no Clube de Fado, “os primeiros degraus da escada. “Tudo se passa ali. Tudo cresce e tudo se aprende ali. É a minha casa, a minha universidade do fado, como costumo dizer, um lugar onde preciso sempre de voltar, a fonte”, descreve. Foi precisamente naquele espaço que Cuca conheceu Gustavo Santaolalla, músico e compositor argentino vencedor de dois Óscares, que manifestou a sua vontade de gravar o disco de estreia da fadista, a qual ficou perante uma “decisão que terá de ser para a vida. Teria de abdicar do meu primeiro estágio em psicologia para poder viajar pelo mundo.”
Demorou uma semana a pensar na resposta, mas a decisão foi a paixão de sempre, a música. Desde então, nunca mais parou de cantar. Para além de dar voz aos temas, Cuca participa ativamente em todo o processo criativo, escrevendo letras e compondo melodias, as quais surgem naturalmente, garantindo que “nunca” lhe faltou inspiração: “Faço-o desde muito nova. Este meu lado de paixão pelo comportamento humano e de mais observadora deixava-me muitas horas a escrever sobre o mundo, sobre a vida e sobre as vivências. Escrevi muitos livros em nova e muitos pensamentos.” No entanto, adaptar os seus pensamentos ao do fado revelou-se difícil, até porque “não era nada habitual as fadistas escreverem e comporem.” Chegou a ser criticada pela ousadia, mas não parou – por lhe ser tão natural não conseguia parar. Teve, no entanto, de se adaptar à pressão das datas marcadas para concluir os discos – algo particularmente difícil para quem não gosta de “escrever pressionada”. A postura de mulher resiliente e tenaz acabariam por se tornar a sua imagem de marca, em contraste com o romantismo, a fantasia e o sonho que carrega na voz. A forma como venceu a timidez – característica da sua personalidade que confessa gostar menos –, prova isso mesmo. Apesar de enfrentar recorrentemente plateias com centenas e até milhares de espectadores, Cuca Roseta sofreu durante muitos anos com o medo do palco, sobretudo quando tinha de falar: “Cantar nunca me custou porque entro numa espécie de segunda dimensão”, reflete. Essencial para ultrapassar este obstáculo foi o taekwondo, modalidade que ajudou Cuca graças aos “valores que tem, como a coragem e a atitude de enfrentar os problemas”. Com o tempo, os palcos acabariam por se tornar a sua casa e, depois de muitos concertos, começou a sentir-se naturalmente mais segura: “Hoje acho tudo bonito, porque tudo tem um sentido maior. Somos exatamente como temos de ser, com os desafios que temos de ter.”
Esta última frase aplica-se, igualmente, ao processo que Cuca atravessou até encontrar a sua identidade e individualidade, numa área em que a tradição impera – uma questão que, num primeiro momento, preocupava a fadista: “Tinha muita pressão de pessoas a dizerem-me ‘Tens de fazer assim, tens de fazer assado’ e eu ficava confusa, até porque muitos dos conselhos eram contraditórios e existiam muitas regras para algo que eu achava que deveria ser instintivo”, recorda. O tempo viria a provar que estava certa, acabando por conquistar um lugar que era seu por direito, afinal de contas ninguém conseguia ter aquilo que a tornava singular: a voz. “Fui percebendo que quanto menos medo tivesse de ser eu própria mais verdadeira eu era e quanto mais verdadeira era mais me tornava única.”
“Não era fácil, nunca foi, mas esse sempre foi o meu lema e contínua a ser: temos de ser genuínos. E eu era. Mas não é fácil continuar a acreditar em algo que estava sempre a ser visto, guiado e criticado. Queriam que eu cantasse o fado tradicional, mas eu não o sentia, embora o amasse. O que me ficava melhor na voz eram os temas de Amália Rodrigues, o fado mais canção, os grandes poetas, as melodias mais complexas.” Conciliar a individualidade com a tradição é, para a artista, “seguir a voz do coração, seguir o instinto com respeito pela tradição. Se há algo que é fulcral no fado é a verdade com que se canta. Se eu só me emociono com certo tipo de músicas, matutinamente fui criando a minha individualidade, sem ciência nenhuma.”
Ao deixar de ter medo de assumir o seu eu, a sua unicidade, Cuca também se distinguiu das demais vozes da sua geração. Fá-lo através de “um fado mais dinâmico, profundo, intenso, nostálgico, sentido, mas doce e que vê sempre a luz ao fundo no túnel, isto é, um fado de esperança”. Apesar de a dor e sofrimento que caracteriza a canção portuguesa, e de a artista reconhecer que estes sentimentos fazem parte da vida, Cuca não gosta de se debruçar sobre eles. Como tal, considera que o seu fado pode também ser descrito como “um fado mais positivo, talvez”. Sobre a já referida nova geração de fadistas (na qual naturalmente se inclui), Cuca considera que “o fado vai de vento em popa”, sendo “mais ouvido e aceite pelas gerações que o vão continuar a levar vivo durante muitos anos”.
Em 2020, Cuca Roseta cumpriu com aquela que é já uma tradição no mundo do fado: a edição de um álbum de homenagem a Amália Rodrigues, a sua grande inspiração: “Faltava este disco na minha carreira e, acima de tudo, faltava esta homenagem e este agradecimento.” A produção do álbum “foi como voltar à raiz, onde tudo começou” e as músicas nele incluídas “são de sempre e para sempre”. Ao contrário do que seria de esperar, a crise sanitária provocada pela pandemia não prejudicou o processo de divulgação do sexto trabalho da artista. Na realidade, a conjuntura “acelerou o processo de criação” pelo imenso tempo que passou sentada ao piano a compor e a escrever. Mesmo com a ausência do calor humano do público, Cuca revela que era percetível “uma maior sede do fado ir até as casas daqueles que precisam tanto da música para sonhar, para ter fé para continuar a ter força e inspiração em momentos tão difíceis”.
Para dar resposta a este desejo, a fadista por em prática dois projetos que acabariam por se tornar “as duas experiências mais incríveis” da sua vida. Primeiramente, deu um concerto num autocarro itinerante, levando música a todos os que se encontravam confinados nas suas casas e, posteriormente, numa série de atuações para os profissionais de saúde em hospitais de todo o país, em jeito de agradecimento: “Só uma pandemia me faria viver estas emoções todas e entender o quanto a música é essencial para a alegria e o bem-estar do outro. A música nestes dois casos foi recebida com muito mais vontade e muito mais amor. Os hospitais, as palavras e os rostos daqueles profissionais desgastados física e emocionalmente a lutar contra a morte e a dor, é algo que jamais esquecerei.”
As experiências, garante Cuca, deram ainda mais “sentido a tudo o que fazemos. A música deixa de ser algo comum para passar a ser cura, amor, carinho, abraço, sonho, inspiração e fé!” Esta última palavra é especialmente importante para Cuca, cuja forte espiritualidade e componente religiosa é conhecida publicamente: “É a minha base, o meu centro, o que dá sentido a tudo o que faço, o que me levanta, o que me dá força para continuar e o que me mantém centrada perante tanta gente e tanto stress”. Paralelamente, também se esforça por manter o seu bem-estar físico e saúde, o que acaba por influenciar “a nossa mente, a nossa cabeça, as nossas palavras e o que somos aos olhos dos outros”.
Passados todos estes anos, seria de esperar que pouco sobrasse da Cuca Roseta que se estreou no Clube de Fado ainda menina, mas a “nostalgia” desses tempos permanece, assim como a vontade de cantar e de aprender, já que, segundo a própria, “quando achámos que sabemos tudo, morremos.” Como tal, o seu sonho para o futuro é aquele que já cumpre “há alguns anos”: continuar a cantar. “É a minha paixão, ver chegar aos outros a emoção, ver que através da minha voz levo brilho ao olhar de quem a sente. Não há maior presente que este.”