Susana Damasceno, criadora da AIDGLOBAL – Ação e Integração para o Desenvolvimento Global –, em 2005, decidiu criar uma organização de voluntariado após uma viagem à província de Gaza, em Moçambique. Em entrevista à Revista Liderança no Feminino, Susana relata-nos as experiências que mudaram o rumo da sua vida.
As experiências que viveu nessa viagem marcaram-na tão profundamente que conceberia uma organização de auxílio voluntário ao povo moçambicano, conforme nos explica: “Esta viagem foi a oportunidade de realizar um desejo que foi crescendo dentro de mim e que me acompanhava desde jovem: fazer trabalho voluntário num orfanato e partilhar histórias e afetos. Foi uma sorte poder realizar esta missão: estava ali pelas crianças! No contacto com a sua realidade aprendi a ser mais humilde e grata. E, acima de tudo, percebi que tive a sorte de nascer no seio de uma família onde imperam os afetos e num país com oportunidades de acesso a uma educação de qualidade. Conclui que o melhor da vida eu já tinha recebido em criança e que, como adulta devidamente formada, era tempo de retribuir.”
Sendo que a aposta na educação possui um papel fundamental na formação dos jovens, não só como profissionais, mas enquanto pessoas, a AIDGLOBAL tem complementado o trabalho das escolas, inclusive, em Portugal: “A AIDGLOBAL é uma aliada das escolas e dos professores que não vivem alheados da certeza de que é nas escolas que as nossas competências se desenvolvem, em todas as esferas do saber. É determinante que as escolas proporcionem oportunidades para os alunos emergirem em contextos que, para muitos deles, dificilmente teriam acesso. Por isso, promovemos projetos de educação para o desenvolvimento e a cidadania global que abordam assuntos e causas que nos interligam independentemente de estarmos em Vila Franca de Xira ou na Amazónia. (…) Não há diretivas, só descobertas que contribuem para uma cidadania ativa!”
Nos tempos atuais, o ensino presencial encontra-se algo comprometido devido à pandemia, pelo que os recursos tecnológicos têm tentado diminuir a distância entre professores e alunos, pese a qualidade do ensino online seja questionável. Nesse sentido, esta situação veio relembrar a importância dos professores e da escola como local de aprendizagem, mas igualmente de desenvolvimento das competências sociais para os jovens: “Esta pandemia, e consequente aceleração digital do ensino, veio demonstrar duas coisas: a tecnologia é como os doces, sabe bem, mas em demasia causa doenças, algumas bem graves! (…) Abraçar os amigos, olhar os colegas, sentir a mão da professora a pousar no ombro como motivação para continuar, mesmo quando a esperança se desvanece, é de extrema importância porque nós somos seres empáticos e são os afetos que nos nutrem. E é também no diálogo, no confronto de ideias, no testemunhar de atitude e no avaliar de comportamentos que nos vamos construindo enquanto sociedade. E já o disse uma vez e volto a afirmar: a escola é o balão de ensaio das sociedades.”
Contudo, a pandemia não deixou de afetar as iniciativas e os projetos atuais da AIDGLOBAL, como nos indica Susana Damasceno: “A pandemia afetou os nossos projetos, mas não os devotou ao fracasso. E é evidente que as exigências aumentaram com este reinventar de novas práticas de trabalho. No entanto, tem sido possível realizar todas as atividades graças à vontade, disponibilidade, criatividade e muita resiliência por parte da equipa executiva. A título de exemplo, num dos nossos projetos europeus, tínhamos uma caminhada em prol do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável – (ODS) 13 Ação Climática, em que contávamos reunir mais de 1000 jovens das escolas de Vila Franca de Xira, aos quais se juntariam outras centenas de jovens de outros pontos do país e, de repente, tivemos que a realizar online! Redesenhamos a atividade e conseguimos encaixá-la num formato dinâmico, em que houve muita interação, acabou por cumprir os objetivos, ultrapassando até as expectativas!”
Em 2018, Susana Damasceno foi galardoada com o Prémio Femina por atos humanitários em prol da dignidade e direitos do ser humano, tratando-se de um pleno reconhecimento do seu empenho, como constata: “Ter recebido o Prémio Femina foi uma surpresa e uma honra, ainda mais por se tratar deste Prémio tão distinto. Este reconhecimento convidou-me a olhar para o caminho percorrido, a avaliar os resultados da minha total entrega à AIDGLOBAL, a partilhá-lo com todas as jovens raparigas e mulheres que têm feito esta caminhada ao meu lado, especialmente a Antonieta Pires e a Sofia Lopes e, por fim, a dedicá-lo à minha mãe, pois sem o seu incansável apoio não seria possível esta entrega.”
Susana Damasceno foi professora de Língua Portuguesa durante cerca de 10 anos, mas será que a carreira docente terá influenciado as projeções da AIDGLOBAL, enquanto uma extensão das salas de aulas: “Fui professora, sempre quis ser professora e tenho uma enorme gratidão pela carreira de docente, onde fui muito feliz! Não sinto falta de dar aulas porque passo a vida a aprender e a ensinar. Reconheço que parte das competências que desenvolvi enquanto professora, como o saber falar em público, o comunicar com rigor as ideias, o saber planificar a curto, médio e longo prazo e a capacidade de tratar de vários assuntos ao mesmo tempo, enfim… ganhei-as durante o tempo em que fui professora. (…) E, de fato, a AIDGLOBAL é uma extensão da minha sala de aula, pois já perdi a conta ao número de jovens estagiários que nós acolhemos e formámos… Desde ensinar como se deve vir vestido para um local de trabalho até a colocar o acento correto no ‘à’!”
Ter começado uma organização não-governamental a partir da ‘estaca zero’ terá sido, com toda a certeza, um trabalho árduo, mas como se manteve motivada e ultrapassou os desafios ao longo de mais de uma década? “Tão somente isto: cada dia que passa estou mais certa de que amanhã vou conseguir que seja melhor do que hoje. Agora, sou uma pessoa muito trabalhadora, exigente comigo e com os outros e como criativa que sou, adoro o meu trabalho porque nele tenho a oportunidade de criar soluções, de aprender todos os dias, de estar informada e de formar pessoas. Engana-se quem ouse pensar que é fácil! ‘É difícil, mas é possível!’ – eis o meu lema de vida!”
Nos projetos realizados e atualmente em curso pela AIDGLOBAL em Moçambique, servindo populações com condições economicamente pouco favoráveis, a desigualdade de género ainda é muito pautada na educação, conforme nos explica Susana Damasceno: “A falta de acesso à educação por parte de meninas e raparigas jovens é um dos grandes motivos da pobreza que se vive em Moçambique e em outros lugares do mundo. Todos sabemos que uma mulher educada é uma mulher determinada, capaz de pegar a vida com as suas próprias mãos, de cuidar de si e dos seus e com outras exigências. Infelizmente, em contextos como o do Chibuto, local onde a AIDGLOBAL atua em Moçambique, as meninas e a jovens raparigas continuam a ser as primeiras a ter de deixar de estudar, a ir trabalhar para as machambas, a cuidar dos seus irmãos, a serem vítimas de assédio e abusos sexuais porque a mulher continua a ser vista como alguém que só serve para servir. (…) E é por isso que elegemos os livros e a capacitação das mulheres enquanto educadoras como a nossa bandeira de trabalho em Moçambique!”
Na ótica de Susana Damasceno, as discrepâncias quanto ao género feminino são igualmente visíveis entre nós: “Em Portugal, as mulheres têm estudos, mas não conseguem ascender a cargos de liderança. Para além da violência doméstica, da desigualdade salarial, da sobrecarga em que vivem expostas com os afazeres domésticos e o cuidar dos filhos e, ainda, a partir de uma certa idade, serem as cuidadoras dos pais, enfim… demasiado ‘peso’ para uma só pessoa! É urgente aliviar toda esta carga que recai sobre a mulher! E isto só é possível através da educação e de políticas públicas ajustadas.”
Segundo as informações concedidas pela AIDGLOBAL, entregaram mais de 50 mil livros doados em Moçambique, desenvolveram mais de 2,7 mil horas de formação e sensibilizaram milhares de jovens alunos. Assim sendo, a AIDGLOBAL quer marcar a diferença e contribuir para um mundo melhor: “Não há maior impacto do que ter acesso a um livro, lê-lo, e esse livro moldar-nos enquanto pessoas. Recordo o conto de Hans Christian Andersen – A Pequena Vendedora de Fósforos –, lido vezes sem conta, e qual contribuiu para ser incapaz de ficar indiferente à injustiça. A menina, personagem da história, morreu devido à indiferença e à impossibilidade de ter sido outra coisa senão uma vendedora de fósforos. A indiferença combate-se com a educação. A educação promove a nossa diferença. E se queremos que as coisas sejam diferentes, temos de ser cidadãos ativos, críticos e exigentes.”
Após 15 anos de existência, a AIDGLOBAL já recebeu contatos ou testemunhos de pessoas que fizeram parte de uma iniciativa/projeto quando eram mais jovens? “Curiosa essa pergunta, porque possibilita-me contar a história de um menino que estudava no 5.º ano nos Pupilos do Exército e participou numa das muitas sessões de educação para o desenvolvimento e a cidadania global que a AIDGLOBAL promove por várias escolas em Portugal. Um dia, recebi um e-mail desse menino, informando-me que era um jovem universitário e que nunca se tinha esquecido do que a AIDGLOBAL lhe ensinara sobre a realidade que se vive noutros países do mundo e que agora queria ser nosso voluntário e ajudar. A educação é transformadora, principalmente quando toca o coração das crianças! Por isso é que o nosso lema é ‘agir, incluir e desenvolver através da educação, porque a mudança acontece pela educação’!”
A equipa da AIDGLOBAL é formada maioritariamente por mulheres, mas será que tal opção influenciará o ambiente de trabalho ou o modo como é gerida a organização? “Não ter paridade de género na AIDGLOBAL não é algo do qual nos orgulhamos. Acredito que beneficiaríamos se tivéssemos mais profissionais do sexo masculino porque a complementaridade é sempre mais benéfica. Curiosamente, em Moçambique, o responsável pela nossa delegação é um homem, Castigo Tchume! Como líder da AIDGLOBAL, posso afirmar que ser homem ou mulher é irrelevante nos termos e condições em que trabalhamos, porque o trabalho é tanto, as exigências técnicas decorrentes da natureza deste trabalho são muitas, os prazos sempre apertados, a multiplicidade de tarefas é gritante e a disponibilidade é requerida muitas vezes fora de horas. Eu brinco com as minhas colegas, apelidando-nos de ‘amazonas’, mas não é por sermos mais ou menos capazes que os homens (e vice-versa), mas por sermos ‘aidglobalitas’ de coração! E este trabalho só se faz, desta forma e com os resultados já alcançados, de coração”, conclui Susana Damasceno.