Há quem sinta que com 20 anos já conquistou o mundo, como há quem leve exatamente o mesmo número de anos para se sentir realizado. Carla Rodrigues já tinha vivido quatro décadas quando terminou a licenciatura e descobriu a sua verdadeira paixão: a contabilidade. Ao longo de todos estes anos, renasceu as vezes que foram necessárias e, principalmente, nunca desistiu de tentar cumprir os seus desejos.
Tal como a maioria dos jovens, assim que atingiu a maioridade, Carla Rodrigues ingressou na faculdade. Esta é uma fase de transição, onde nem sempre se tem consciência daquilo que se quer e qual o caminho a percorrer. Com 18 anos, a vida nada mais é do que um conjunto de caminhos. Pedir para escolher apenas um, e ficar nele para o resto da vida, pode parecer assustador. E, por isso, não é admirar que vários estudantes desistam do ensino superior.
Essa foi a realidade de Carla Rodrigues, que, ao arranjar um part-time numa loja de roupa, e ao não conseguir conciliar com os estudos, decidiu “colocar a faculdade de lado, até ganhar uns trocos”. O problema é que isso durou duas décadas. “Estive 20 anos a trabalhar numa loja de roupa, entrei como funcionária de part-time e cheguei a responsável de loja. Até a cadeia de lojas sair de Portugal”. E assim, o caminho que Carla acabou por escolher, foi-lhe impossibilitado de continuar a ser trilhado: “vi-me desempregada aos 40 anos e velha demais para trabalhar naquilo que eu sabia fazer”.
Foi neste momento que repensou sobre a licenciatura que tinha ficado esquecida lá atrás no tempo, achando que seria uma boa altura para a concluir. Carla conta que teve dois professores que tinham sido seus colegas há 20 anos atrás, e que era “muito difícil os tratar por professor”. Acredita que a idade não a impediu de nada, até porque julga que “o peso da responsabilidade faz com que as pessoas com mais idade tirem melhores notas, sem dúvida nenhuma”. Terminou o curso, tornou-se contabilista e pensou “isto é mesmo fixe, é mesmo isto que eu gosto de fazer, eu andei perdida estes 20 anos”.
Agora certa do seu propósito profissional, o próximo passo levou Carla Rodrigues a aventurar-se por um estágio não remunerado, durante 9 meses. “Todos os dias ia para Matosinhos e o senhor que lá estava nem o almoço me pagava. Saía tudo do meu bolso, tudo que eu fiz foi por amor à profissão”, revela.
Findado o estágio, Carla realizou o exame de acesso à Ordem, que diz ser “muito difícil, quatro horas de suplício”. Ainda assim, concluiu com sucesso à primeira. Valoriza muito essa conquista, pois considera que “temos de nos dar mérito a nós mesmos, e elogiar-nos a nós. Eu fiquei contentíssima por ter ido para a faculdade aos 40 anos, com toda a responsabilidade que eu tinha. Eu fiz o estágio, eu consegui passar no exame da Ordem à primeira. Foi fantástico”.
“Se ninguém me dá emprego, então eu arranjo o meu próprio”
Carla Rodrigues estava a viver a prova de que cada um tem o seu tempo e que ninguém está atrasado na vida. Aos 40, sentia-se mais realizada e confiante do que em algum outro momento da sua jornada pessoal. O que se segue depois? “Depois vem o balde de água fria”, explica. Embarcou numa busca por emprego, mas rapidamente se apercebeu de que as portas estavam fechadas para si. “Não há emprego para pessoas aos 40 anos. Ou porque tu tens filhos, ou porque não te vão ensinar, porque vão perder tempo e é preferível ensinar os mais novos, ou porque tu já tens vícios no trabalho e os mais novos não têm”. A contabilista admite terem sido tempos dolorosos, em que enviava currículos e só a contactavam porque não referenciava a sua data de nascimento. “Quando eu dizia quantos anos tinha, morria ali. É doloroso”, garante.
É fácil fazer limonada quando a vida nos dá limões. Mas e quando não nos é dado nada? Significa que devemos desistir? Carla Rodrigues não poderia discordar mais. Se não existia nenhum caminho que pudesse percorrer, então tinha de criar o seu. Arregaçou as mangas, tendo por base a ideia: “se ninguém me dá emprego, então eu arranjo o meu próprio”. E, um dia, lá chegou ao pé do marido e disse “olha, a partir de hoje, o carro vai ficar no pátio e eu vou montar aqui um escritório”. Dito e feito. Deu uma nova vida à garagem, transformando-a num local de trabalho, a sua Contas Refletidas.
Um pouco de publicidade, apostar no passa a palavra e, quando se apercebeu, já tinha uma carteira de clientes bem recheada. Carla Rodrigues conta que está “seriamente a pensar pedir ajuda, contratar alguém, nem que seja a part-time, porque já está a ficar doloroso”. O seu único entrave, que sente que é defeito da profissão, é confiar nas pessoas. “É muita responsabilidade, eu pelo menos sinto o peso. Ainda não dei o passo porque tenho dificuldade, tenho medo que a pessoa que eu contrate não tenha o mesmo sentido de responsabilidade. Porque eu não estou a mexer com o meu dinheiro, estou a mexer com o dinheiro das outras pessoas”, confessa.
É da opinião que, “se eu tenho conhecimento de um apoio, eu sinto na obrigação de o comunicar com os meus clientes. Eu tenho acesso à informação, muitos deles não têm. E é que nem têm tempo para procurar, porque ou trabalham ou estão atentos a estas coisas”. A maior parte das empresas que Carla orienta são micro, e em 50% delas é o sócio-gerente o único trabalhador. “Para mim, a contabilidade é ajudar aquela pessoa a evoluir, em todos os sentidos. Não faz sentido eu só lhe processar o salário, ou só fazer o IVA. Porque se eles evoluírem, eu também evoluo”, refere. O feedback que recebe é que é uma profissional que está sempre acessível. “Eu não sei como é que os meus colegas funcionam, mas eu acho que eles também deveriam ser. Faz toda a diferença eu atender o telefone agora ou daqui a meia hora, ou daqui a 15 dias”, diz.
No meio disto tudo, a contabilista tirou ainda o CPP e dá formação online para o centro de formação Do It Better. Diz adorar, e, por muito cheia que esteja a sua agenda, acredita que “quando se gosta, faz-se”.
“Para o português ainda é tabu falar de dinheiro, mas temos de falar sobre isso, porque todos nós levantamo-nos todos os dias para o ganhar.”
Carla Rodrigues considera o projeto piloto da literacia financeira como sendo “fantástico” e “essencial”, até porque dentro de casa tem um exemplo do porquê de ser algo urgente: “a minha filha entrou para a faculdade, e a maior parte dos designers trabalham a recibos verdes, são trabalhadores independentes. Ela chegou muito aflita à minha beira, porque a professora pediu para fazer o cálculo do valor hora, e ela não sabia”. Carla confessa que só aí é que teve consciência de “que os miúdos saem para o mercado de trabalho a zeros”. Defende que é preciso falar-se mais sobre dinheiro, “porque faz parte da nossa vida, quer a gente queira, quer não”. “Para o português ainda é tabu falar de dinheiro, mas temos de falar sobre isso, porque todos nós levantamo-nos todos os dias para o ganhar”, complementa.
E não é apenas nos mais jovens que repara nessas lacunas, sente a mesma preocupação para com os mais velhos. “Quando eu inicio uma formação, vejo-me aflita para lhes explicar o que é a contabilidade. Não a que fazemos, mas a do dia a dia. As entradas, saídas…não sabem, como é que é possível?”, questiona. É um tema que se alarga a toda a vida pessoal, como ao próprio orçamento familiar que, segundo Carla, há quem não o saiba fazer. Declara que é necessário “saber que ganhamos x e temos despesas fixas. E além destas despesas fixas, temos um seguro do carro, por exemplo, que não é fixo, mas acontece uma vez por ano. E muitas vezes estas pessoas chegam ao mês de pagar o seguro e não têm dinheiro, porque não fizeram conta que tinham de o pagar”.
A contabilista espera que esta medida ajude a contrariar o paradigma que se vive atualmente, no entanto, crê que, “na falta, seria ótimo que todos os contabilistas conseguissem ensinar um pouco aos clientes”. Carla Rodrigues relata um exemplo de um “miúdo”, como lhe chama, por ser da idade da sua filha: “ele era trabalhador independente, com 19 anos, quando abriu atividade, e hoje, já conseguiu abrir a empresa dele. Pra mim, isto é ver um filho a crescer”. De olhos marejados e levemente emocionada, sublinha ainda que “isto é o motivo pelo qual sou contabilista”.
“Se eu digo que eu consigo, eu tenho de conseguir. Se eu digo que faço, eu tento fazer.”
Com uma trajetória de vida marcada pela resiliência e força de vontade, Carla Rodrigues apela aos futuros rostos da contabilidade do nosso país: “é preciso experimentar e ver se se gosta. Se não gostar, que fuja”. Pode parecer um conselho um tanto estranho, mas a profissional defende que “muitas pessoas tiram o curso e não sabem muito bem” se aquilo que almejam para a vida delas ou não. Reforça também que “não há vergonha nenhuma em tirar um curso, experimentar, ver que não gosta e mudar”, pois “é preferível ser sincero consigo mesmo”.
A versão de 20 anos de Carla Rodrigues nunca imaginou que um dia esta seria a sua realidade, que “teria um escritório assim, uma empresa”. E tudo aquilo que construiu, a si se deve. “Se eu digo que eu consigo, eu tenho de conseguir. Se eu digo que faço, eu tento fazer. Tenho esse traço na minha personalidade”, afirma. Carla julga que “todos nós conseguimos ser empreendedores, temos é de ter coragem para o ser”. O sucesso da profissional deve-se a esse salto de fé e coragem, ao arregaçar das mangas e ao caminho que foi trilhando para si mesma. Quando uma porta se fecha, talvez seja hora de tentar a janela. “Se queremos muito uma coisa, eu acho que a conseguimos sempre”, reflete.