Temos tido ao longo dos anos casos, no escritório, nesta área que nos marcaram definitivamente. A título de exemplo: um executivo de meia idade, que após uma depressão causada por uma intervenção mal feita, entra numa espiral destrutiva da vida pessoal e profissional; uma senhora de meia idade, que foi fazer um exame de rotina, sem grandes complicações, que acaba com uma cirurgia urgente e com meses de calvário, com ostomização e sucessivas operações. No primeiro caso mencionado, os factos estão a ser discutidos, na primeira instância, 14 anos depois de terem ocorrido, pelo que fica claro que por melhor que seja a decisão, nunca se fará verdadeira justiça, porque não foi feita em tempo útil.
Esta área da saúde é sem dúvida uma área muito sensível, na qual a justiça tem dificuldade em entrar. Os obstáculos para quem queira ser ressarcido judicialmente pelos danos sofridos nestas situações são incomensuráveis: a começar pela assimetria de conhecimentos. Desde logo o doente e quem o representa não tem à partida os conhecimentos científicos para fazer face aos argumentos técnicos dos médicos e instituições hospitalares.
Por outro lado, deparamo-nos com a defesa corporativa da própria classe; sistematicamente os médicos defendem-se uns aos outros, porque estão conscientes que também eles podem cometer erros. Este corporativismo também se denota num arquivamento massivo dos processos disciplinares na ordem dos médicos. Acresce a isto que o registo dos atos e história clínica, muitas vezes, é inexistente e /ou deficiente. Também esta classe beneficia de um grande prestígio social e técnico, o que torna ainda mais difícil a sua responsabilização. Acresce que os doentes têm sistematicamente um défice de informação relativamente às intervenções médicas, porque simplesmente não lhes são explicadas. Também pela natureza das coisas os doentes não estão conscientes em muitos atos médicos que implicam sedação.
O próprio consentimento médico é prestado pelo doente através da mera aposição de uma assinatura num formulário genérico pró-forma, sem que nada seja explicado e sem que o doente seja minimamente esclarecido, ou seja de uma forma que não acautela o direito do doente nesta matéria. Se a estas situações acrescentarmos a já conhecida mora da justiça e a existência de alguma jurisprudência contraditória, temos as condições ideais para ser uma área em que a justiça não entra e os lesados resignam-se a não reclamar uma indemnização. Outra alternativa são os processos judiciais longos, complexos tecnicamente, que são onerosos, com recursos sucessivos e que implicam um extraordinário desgaste para os lesados, para os médicos, para os profissionais envolvidos e para o próprio sistema de saúde. De qualquer forma uma coisa é clara o erro médico existe. Segundo a organização mundial de saúde o erro médico é a 14º causa de morte no mundo e 15% da despesa hospitalar global resulta destes erros.
Considero que se deve tratar esta problemática ao nível da prevenção. Médicos, juristas e a sociedade em geral devem debater e discutir este tema, de maneira a desenvolver políticas, práticas e estratégias de prevenção do mesmo. Considero também que faz todo o sentido voltar discutir uma recente proposta da lei de bases da saúde, que contemple o recurso à mediação e à resolução destas situações através mecanismos alternativos de resolução de litígios (designadamente comissões técnicas), se desenvolva uma objetivação da responsabilidade das instituições, ou seja, que os danos possam ser ressarcidos sem que seja necessário provar a culpa dos médicos e das instituições, que as seguradoras tenham um papel mais ativo no pagamento das indemnizações devidas, sem a necessidade de as partes passarem pelo calvário de intermináveis sessões de prova.
Certamente que uma evolução nesta linha será melhor para os doentes, mas também para os médicos, que se podem focar melhor no que têm a fazer, sem o ónus e custo de processos judiciais que se podem arrastar durante anos.