Uma velha lenda da Serra do Algueirão, no Algarve, conta que uma moura sentada no gargalo de um poço, prometeu a um pastor duas esmeraldas se ele descobrisse os sapatos verdes dela. Sem descobrir os sapatos, o pastor tentou roubar as esmeraldas à moura mas esta desfez-se em salpicos de água e o pastor não viu mais as joias. Os sapatos, esses, estavam, no fundo do poço. Uma história que mostra o quanto a água sempre foi respeitada e valorizada no Algarve.
A água é, iniludivelmente, um elemento e um recurso vital para as pessoas. Dela o nosso organismo não prescinde, a agricultura depende dela, precisamos obviamente de água para os nossos cuidados de higiene. A verdade é que, até recentemente, se olhou para a água como algo que vai existir sempre, a jorrar nas torneiras e furos em abundância.
Apenas 4% da água do Planeta é água doce. Dela, disponível para as nossas já referidas necessidades, dispomos apenas de 1% correspondente à água doce presente em estado líquido. Ocorre que no nosso cenário pós Revolução Industrial os rios e ribeiros já não correm límpidos e fartos, as fontes e poços já não nos servem abundantemente. Estamos próximo de um abismo insondável, antecipando-se árido.
A gestão desse recurso indispensável à vida, que é a água, tem sido feita de uma forma esvaziada de sentido e a situação que ocorre no Algarve é disso testemunho. Expunha o Público em 15 de fevereiro de 2019: «O nordeste algarvio já vive momentos dramáticos. Cerca de três quilómetros da ribeira de Odeleite estão salinizados e as populações do interior de Castro Marim estão a ser abastecidas por auto-tanques. Os furos artesianos secaram.» Informando que o Plano Intermunicipal Para Adaptação às Alterações Climáticas (PIAAC) prevê, no pior cenário, uma região praticamente desértica no final do século, a manchete da notícia já era bastante esclarecedora: «No final do século, o Algarve terá menos 80% de água mas rega-se mais que nunca».
No estudo “O Uso da Água em Portugal”, publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian em 2020, dava-se a conhecer que «O World Resources Institute, numa projeção para 2040, classifica Portugal com risco elevado de stress hídrico, ou seja, risco elevado de ter de gerir falta de água com qualidade, na resposta às necessidades do país. Um cenário que não é homogéneo no território português, estando o Sul mais vulnerável à escassez.» Logo de seguida escrevia-se «Essa possibilidade exige pensar a longo prazo». O estudo estava imbuído de rigor e das melhores intenções. Longo prazo!?
Contudo, medidas sérias não foram tomadas, continuando a fazer-se o licenciamento de projetos com grande exigência de água. Eis que, recentemente, surgem notícias como esta: «Com água para apenas oito meses, Algarve poderá enfrentar drásticas medidas de poupança. A Agência Portuguesa do Ambiente diz que é a pior seca extrema de sempre no Algarve.» (SIC Notícias, 09/01/2024). Segundo o Serviço de Alterações Climáticas do Programa Copérnico (C3S) da União Europeia, 2024 teve o janeiro mais quente desde que há registos.
No passado dia 8 de fevereiro o Governo, reconhecendo a grave situação de seca na região do Algarve, decidiu (agindo ao retardador) tomar atitudes mais restritivas e penalizadoras dos consumos, indiferentemente da sua origem ou dos seus fins. As medidas com as quais o Governo se propõe mitigar os efeitos da seca no Algarve, incluem a determinação de que «Cada utilizador municipal fica limitado ao valor correspondente a 85% do volume registado no período homólogo de 2023, ficando previsto um tarifário diferenciado para os consumos que excedam o limite estipulado.»
Como se as pessoas comuns fossem esbanjadoras de água, insensíveis às sucessivas campanhas em que são instigadas a poupar água. Como se essa poupança não fosse já inevitável face às dificuldades em gerir os orçamentos familiares! E sem o Governo tomar medidas restritivas para o setor do turismo e outros.
O impacto do turismo na falta de água no Algarve é significativo. A grande afluência de turistas provoca pressão sobre os recursos hídricos locais, especialmente durante os meses de verão, quando a demanda por água é mais alta devido ao uso em hotéis, resorts, piscinas, campos de golfe e residências temporárias. Fala-se e escreve-se sobre o turismo como fator de empregabilidade e desenvolvimento da região. Prega-se uma pretensa sustentabilidade. E verifica-se que afinal o turismo não foi orientado devidamente para as pessoas e o ambiente da região. O Algarve caiu numa armadilha de seca e desespero que lhe foi colocada e que se esconde num oásis de crescimento e desenvolvimento.
Empresários e autarcas têm vindo a atualizar os seus discursos usando palavras e discursos que tomaram das reflexões e intenções de quem vinha a propor transformações que levassem a um efetivo bem-estar das pessoas e à preservação do ambiente e dos recursos naturais. As palavras gastam-se, com efeito, e sustentabilidade foi um termo que inundou as justificações das escolhas que tornaram o Algarve uma região com grandes problemas ambientais.
De permeio procedeu-se ao licenciamento de plantações de abacates, por vezes recorrendo a falhas na legislação. Plantações ilegais continuaram no terreno, como descreve a notícia «A lei do abacate. Plantações consideradas “ilegais” continuam a consumir água num Algarve em seca» (CNN 13 de agosto de 2023). Sendo que existem na região cerca de 2000 hectares cultivados com essa árvore. É fácil de entender o pesadelo que isto representa, tendo também em consideração que o Algarve é uma região de cultura intensiva e que a laranja é uma imagem de marca do Algarve.
O abacateiro é nativo da América Central e do México e foi introduzido no Algarve nos anos 80.Para quem garimpa maneiras de ganhar muito dinheiro, sem escrúpulos ambientais, o abacateiro é o “ouro verde”. Se um quilo de laranjas do Algarve chega ao consumidor final por cerca de 1,20€, um quilo de abacate é colocado à venda por aproximadamente 4€. Mesmo estando demonstrado que a agricultura intensiva no Algarve foi um dos fatores que contribuiu para a atual situação de seca, o Governo determinou em 08/03/24 «a atribuição de apoios para medidas extraordinárias, com uma dotação orçamental indicativa de 26,65 milhões de euros, bem como 200 milhões de euros para medidas de apoio excecional aos agricultores.» https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/comunicacao/noticia?i=nova
s-medidas-para-mitigar-efeitos-da-seca-no-algarve ). Irá o Estado injetar
também verbas na cultura de abacates?
Deixando para trás a beleza cénica e o luxo dos campos de golfe do Algarve, existe uma preocupação crescente e constante com o excessivo uso de água e o impacto na região desse comportamento. A construção e manutenção dos campos de golfe exigem a utilização de grandes quantidades de água, especialmente num clima crescentemente mais quente e seco como o do Algarve. Estes extensos campos verdes requerem irrigação regular para manter o relvado impecável, com os padrões de qualidade que os golfistas esperam. A manutenção dos campos de golfe muitas vezes envolve o uso de produtos químicos como pesticidas e fertilizantes, produtos que produzem um ciclo de contaminação dos solos e da água. O Algarve conta com 40 campos de golfe, estando um outro em processo de licenciamento. Esses 40 campos estão a ser regados, maioritariamente, com água de furo que pode ser usada para a agricultura local (Público, 23 de julho de 2023).
Quando em todo o mundo está na ordem do dia a promoção de formas de turismo sustentável, tem de se optar também por elas na região do Algarve. Selos como “safe” ou “clean” e pretensas otimizações das regas dos campos de golfe, não bastam. É necessário encarar de frente a realidade de termos 40 campos de golfe numa região em avançado estado de seca, o que não é compreensível.
A Organização Mundial de Turismo define bem o conceito de turismo sustentável, o qual cada vez mais dita a existência de um número crescente de “turistas verdes”: «O turismo que considera plenamente os seus atuais e futuros impactos económicos, sociais e ambientais, abordando as necessidades dos visitantes, da indústria, do meio ambiente e das comunidades locais”. Pessoas esclarecidas não se iludem com selos, propaganda ou estudos cheios de números contorcidos, juras e promessas.
Cada vez mais as pessoas valorizam o meio ambiente e procuram destinos de férias onde se valoriza o ambiente. E, perguntas importantes, quem procurará um Algarve sem água? Quer-se um Algarve virado para um turismo predatório, residual, alheio às mudanças em curso nas mentalidades e nos procedimentos ambientais?
Já referimos que se prepara a abertura de um novo campo de golfe no Algarve. A Agência Portuguesa do Ambiente afirma que a concretização do licenciamento do campo «está dependente da garantia de água para rega sem recurso a origens de águas doces naturais» (Público, 01 de fevereiro. 2024). Isto põe a possibilidade de o campo ser viabilizado recorrendo a água de ETAR (Estação de Tratamento de Águas Residuais).
Sendo que mais da metade das águas residuais tratadas nas ETAR estão contaminadas pela intrusão salina, pouco ou nada de volume de água restará para utilização em agricultura. Acontece que se refere a já utilização de águas de ETAR, por parte do setor dos campos de golfe. O investimento financeiro para a eficiência das ETAR e todas as formas de água para reutilização na agricultura, têm mesmo de ser canalizadas para a agricultura.
A situação hídrica no Algarve é, portanto, de deixar os nervos à flor da pele. Porém, um portal na internet de reservas hoteleiras, relaxa-nos, anunciando hotéis da região com piscina interna: «Porquê preocupar-se com a meteorologia quando pode desfrutar da piscina quando quiser?». Sem restrições, o luxo e os caprichos de alguns podem ser satisfeitos. A água das piscinas dos hotéis e resorts do Algarve não afetam as consciências de turistas menos escrupulosos ambientalmente. O setor hoteleiro tem de partilhar a preocupação e ações para enfrentar a situação de seca e promover com a restante sociedade, a utilização responsável da água. Refresquem-se as ideias e os ideários.
A situação de crise hídrica que decorre no sul do país (não abordamos aqui o Alentejo), acontece da mesma forma noutros pontos da Europa do Sul. A crise climática é global. Em maio do ano passado, nas vésperas do verão, chegaram-nos notícias também inquietantes de França. Um dos principais rios dos Pirinéus Orientais,o Agly, encontrava se quase seco. Isto numa região turística mas também dependente economicamente da agricultura. As autoridades regionais prontamente decretaram situação de crise, o mais alto nível de alerta, passando a ser proibido encher piscinas ou lavar carros.A rega de hortas e espaços verdes só foi possível com água proveniente de um sistema de reutilização. A venda de piscinas de jardim foi interdita. (EURONEWS, 10 de maio de 2023).
Em fevereiro de 2024, foi lançado o concurso para a construção de uma dessalinizadora no Algarve. A dessalinizadora, que se pretende construir em Albufeira, anuncia-se como uma das respostas à seca no Algarve. O financiamento provém do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). (ECOSAPO:PT, 16 de fevereiro de 2024).
A dessalinização pode ter impactos ambientais significativos, como o consumo de grandes quantidades de energia e emissões de gases de efeito estufa associadas à produção de energia necessária, a libertação de salmoura concentrada de volta ao ambiente marinho, ou o possível lançamento ao mar de remanescentes de cobre e cloro, com consequências negativas sobre os ecossistemas marinhos. A dessalinização é apresentada como a grande solução para que exista abundância de água e se mantenha a cultura unicamente economicista de exploração da indústria do turismo e da agricultura.
Turismo e agricultura são indissociáveis da consciência ambiental e do respeito pelos ecossistemas e pela natureza. Antes de se pensar na dessalinização avulsamente – no caso do Algarve, parece que para justificar utilização de verbas do PRR – dever-se-ia (ou deve-se) priorizar medidas coesas e integradas numa política racional de conservação e uso eficiente da água, como a reciclagem ou reutilização da água, a gestão eficaz de bacias hidrográficas e a redução do desperdício. Desperdício quer nas utilizações irracionais que já abordamos, quer em fugas de água.
Uma reportagem apresentada na RTP em 27 de janeiro de 2024, é esclarecedora. Na piscina municipal de Quarteira, assim como um pouco por todo o Algarve, para manter a qualidade da água, saem diretamente para o esgoto 40 metros cúbicos de água, ou seja 3% do volume total. O equivalente ao consumo mensal aproximado de 10 pessoas. Dos 16 concelhos algarvios apenas 2 reaproveitam a água das piscinas, como a que é usada para a lavagem dos filtros daqueles equipamentos. Essa reutilização é feita, designadamente, na lavagem de contentores de resíduos e das ruas. O reaproveitamento da água descartada diariamente nas várias piscinas do
Algarve é de 25 hectómetros cúbicos, mais do que a água que existia em
novembro de 2023 na Barragem de Odeleite. A otimização da reutilização da
água das piscinas municipais é urgente.
São ainda milhares de milhões de litros de água que se desperdiçam
anualmente, mormente através de rupturas nos sistemas de abastecimento.
Essas rupturas podem acontecer por variadas razões, não sendo, porém,
admissível que não sejam minimizadas com práticas responsáveis, atentas e
eficientes, como exige a responsabilidade social e ambiental na situação de
crise hidrográfica que se vive na região do Algarve.
A situação hidrográfica no Algarve, é já uma calamidade. É forçoso executar as
diretrizes do bom senso e deve-se cumprir a Lei da Água, a qual inscreve logo
no Capítulo I, Artigo 1o. que se tem de «promover uma utilização sustentável da
água, baseada numa proteção a longo prazo dos recursos hídricos disponíveis».
Faltaram os prudentes no decorrer de tudo que motivou a crise hídrica. Quem a antevia e pugnava pelo uso racional da água, era considerado simples. Os factos e os números estão à mostra e agora, o triângulo da seca no Algarve tem de ter uma resposta imediata e simultânea em todos os seus segmentos.
A forma de, com toda a necessidade, nos opormos ao triângulo de devastação no Algarve é pensar para a frente, travando os abusos e privilégios de alguns, em favor do bem estar de todos. Com coragem e frontalidade, cortando, restringindo e cumprindo escrupulosamente uma estratégia de adaptação às alterações climáticas, o que vai implicar uma nova forma de ver o turismo e a agricultura no Algarve. Ou não vislumbraremos mais mouras encantadas sentadas num gargalo de poço do Algarve. Nem sequer um poço.
Fontes:
Fundação Calouste Gulbenkian
Universidade Nova de Lisboa
Gestão do risco de seca no Algarve
Afonso do Ó Pinto Alho
Página do Conselho Nacional da Água