“DEDICAR UM DIA NO ANO À DISCUSSÃO SOBRE OS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES NÃO SÓ É IMPORTANTE, MAS FUNDAMENTAL”
Há quatro anos a trabalhar no Fundo das Nações Unidas para a População, Mónica Ferro possui um conhecimento vasto sobre as condições em que vivem milhões de mulheres e os obstáculos que diariamente estas têm de enfrentar. Num momento em que o mundo luta para pôr fim à pandemia, a dirigente não duvida de que a crise sanitária trará para a “luz do dia uma série de desigualdades de género que muitos acreditavam ultrapassadas ou, pelo menos, atenuadas”.
Tem sido uma discussão recorrente ao longo dos últimos anos, especialmente ao longo da última década: face à presença mais significativa de mulheres em cargos de topo, à diminuição das desigualdades salariais ou à quantidade crescente de legislação em vigor que visa proteger os seus direitos reprodutivos, fará sentido continuar a celebrar o Dia Internacional da Mulher, implementado pela Organização das Nações Unidas em 1975? A resposta pode divergir consoante os intervenientes, mas, sobretudo, consoante o seu nível de conhecimento sobre a realidade não só nos países desenvolvidos, mas em todo o mundo.
Enquanto chefe do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA), sedeada nas instalações de Genebra, Mónica Ferro é, provavelmente, das pessoas mais capacitadas para responder e fá-lo de forma clara: “Faz cada vez mais sentido.” A agência em que trabalha é responsável pelas questões relacionadas com a saúde sexual e reprodutiva, pelo que o seu trabalho destina-se a garantir que “todas as gravidezes sejam desejadas, todos os partos sejam seguros e o potencial de cada jovem seja realizado”. A ação é possível através da identificação dos “grupos populacionais que mais têm sido deixados para trás”, ou seja, mulheres, raparigas e jovens que diariamente enfrentam formas de violência com base no género, incluindo a luta contra a mutilação genital feminina e o dos casamentos infantis – o UNFPA co-lidera, com a UNICEF, os programas contra estes flagelos.
Como tal, três objetivos “transformadores” foram estabelecidos: “zero necessidades de planeamento familiar por realizar, zero mortes maternas preveníeis e zero casos de violência com base no género.” Trata-se de uma “agenda ampla de direitos humanos e de saúde global” que se alinha com os resultados da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento realizada no Cairo, em 1995. Mónica Ferro considera-a “uma agenda inacabada, perpétua, se quiserem, porque implica um reconhecimento progressivo de direitos e de remoção de obstáculos a uma vida com mais liberdade.”
Alguns dos números apresentados dizem-nos que esta é uma realidade ainda muito longínqua: “Todos os dias morrem 800 mulheres por causas evitáveis ligadas à gravidez, parto e pós-parto – 99% delas em países em desenvolvimento; todos os dias se casam cerca de 30.000 crianças com menos de 18 anos – 12 milhões por ano; há no mundo, atualmente, cerca de 200 milhões de mulheres e raparigas que vivem com as consequências de uma qualquer forma de mutilação genital; e existem mais de 240 milhões de mulheres que querem planear a sua fertilidade e não têm acesso a métodos modernos de planeamento familiar.”
Foi com o objetivo de ajudar na resposta complexas a estes desafios que Mónica Ferro se decidiu candidatar ao lugar no UNFPA: “Sempre me revi nestas causas; trabalhei em muitas delas enquanto docente universitária e enquanto parlamentar [Mónica foi deputada à Assembleia da República pelo PSD entre 2011 e 2015], onde coordenou o grupo parlamentar sobre População e Desenvolvimento e foi membro do comité executivo e vice-presidente do fórum europeu de parlamentares para a População e Desenvolvimento, pelo que acompanhou de perto os frutos do trabalho realizado pelo UNFPA.
O cargo de deputada é descrito por Mónica como “a responsabilidade mais desafiante” da sua vida até agora, não só pela “confiança que os eleitores depositaram” em si, mas também pelo trabalho que desenvolveu “em matéria de cooperação para o desenvolvimento, igualdade de género e direitos humanos.” Anteriormente, a dirigente já tinha trabalhado “em e com organizações da sociedade civil”: é sócia-fundadora da P&D Factor e ajudou a criar a Objectivo 2015; participou, como comentadora, em programas de política internacional, como o “Olhar o Mundo”, da RTP. Após a experiência como deputada, Mónica Ferro foi, ainda, secretária de Estado adjunta para a Defesa Nacional, cargo que lhe permitiu trabalhar com “muita gente que acreditava na política como serviço público e que queria mudar o mundo.” “Um privilégio e uma responsabilidade em que tudo fiz para estar à altura”, relembra. Apesar do percurso profissional “feliz e cheio de momentos de grande satisfação”, Mónica não esconde que encontrou “vários desafios pelo caminho”, por por ser mulher, por ser muito vocal e muito apaixonada pelas causas de direitos humanos e por tentar conciliar a vida profissional com a vida familiar e pessoal” – algo que só foi possível “com muita ajuda e com um marido que viveu essas experiências num registo de total igualdade. Ainda há muita pressão desigual sobre as mulheres em Portugal e no mundo e em todos os quadrantes profissionais. Há pressão para que tenham uma carreira rica e diversificada, para que sejam mães e para que assumam esses papéis de forma acrítica”, reflete.
“Senti várias vezes que ser mulher fazia de facto a diferença. Há uma forma diferente de exercer determinados cargos que resulta de um processo de socialização a que somos sujeitas, o género é isso mesmo. Uma série de papéis aprendidos e consciencializados como expectativas, mas que podemos questionar e desafiar. As mulheres trazem para a política, por exemplo, uma perspetiva mais multidisciplinar e mais transformadora. Trazem para a discussão temas mais próximos da vida quotidiana das pessoas. E desafiam algumas das práticas políticas que se formaram ao longo de séculos de exercício exclusivamente masculino dos cargos.”
Com a atual crise pandémica, Mónica considera que “uma série de desigualdades que muitos acreditavam ultrapassadas ou pelo menos atenuadas” serão trazidas para a “luz do dia”. É o caso da dupla jornada de trabalho, das desigualdades (o facto de 70% da força de trabalho nos sector da saúde ou dos serviços sociais serem mulheres) ou do aumento da violência com base no género (mutilação genital feminina e casamentos infantis) – um fenómeno que já foi batizado como a “pandemia na sombra”. “Se a isto acrescentar uma série de discriminações estruturais que se sobrepõem, a baixa representação política das mulheres nos parlamentos e nos governos, os “tetos de vidro” e a desproporcional presença das mulheres na força de trabalho, e a ausência das mesmas nos órgãos de gestão e de decisão política, a desigualdade salarial e tantas outras iniquidades percebe-se, rapidamente, que dedicar um dia no ano à discussão sobre os direitos humanos das mulheres não só é importante mas é fundamental”, reitera.
A grande mensagem que Mónica Ferro deixa às mulheres é “que acreditem em si mesmas e nos seus direitos, que os reivindiquem. Que ousem ter um sonho e uma missão e que trabalhem para que isso aconteça.” No seu caso, o que a motiva é pensar nas disparidades existentes que resultam de “séculos de assimetrias no acesso ao poder e da luta pela sua manutenção”. Por fim a esta realidade “é um caminho longo a fazer e até lá é preciso trabalhar para corrigir essas desigualdades e garantir mais dignidade para todos. Daqui a dez anos continuarei a lutar pelas minhas causas, neste ou noutro contexto. Há tantos sítios em que podemos fazer a diferença.”