A MAGIA DAS HISTÓRIAS CARLA ROCHA

Este exercício que me preparo para fazer é o tipo de exercício que todos deveríamos fazer, a certa altura da vida: refletir sobre o caminho que fizemos em tomar consciência do que nos trouxe até aqui e das pessoas que nos ajudaram a percorrê-lo.

A nossa história é um somatório de eventos, acontecimentos, pequenos desastres, que vão moldando a nossa existência e desbravando novas oportunidades. Acredito que todos temos dentro de nós tudo o que precisamos para enfrentar os momentos menos bons e aproveitar as oportunidades quando a maré está favorável.

Não precisamos de sorte, mas sim de saber o que queremos, traçar um plano e seguir. E foi isso que fiz com a minha paixão pela rádio e, mais tarde, foi isso que me levou a fundar uma empresa de formação na área da comunicação onde procuro ajudar quem sente que através de uma comunicação mais eficiente (objetiva, empática, memorável) pode fazer a diferença, na sua área de atuação profissional, ou na sua vida pessoal.

As pessoas que se cruzam connosco e que nos influenciam têm um contributo importante. Podem ajudar ou dificultar, mas têm um papel significativo para o resultado final: o ponto onde nos encontramos hoje, a pessoa em que nos tornámos. Tudo isto depende da família em que nascemos, de quem escolhemos rodear-nos e de quem, ocasionalmente, entra na nossa vida sem que tivéssemos controlo sobre isso.

A minha avó materna foi a pessoa que mais influência teve em mim. Olho para trás e percebo, em mim, traços do caráter desta mulher de origens humildes (foi costureira toda a vida) e tão determinada que roçava a rebeldia. Vivi com ela num período conturbado da minha infância, em que não estava feliz na escola, tinha uma baixa autoestima e não conseguia encontrar no futuro (quando pensava sobre ele) uma réstia de esperança de que este sentimento podia mudar.
Os meus pais, apesar de terem níveis baixos de escolaridade, sempre me incentivaram a continuar os estudos e a acreditar que é na educação está a chave para conseguir ter uma vida melhor do que aquela que tínhamos.
Era com a minha avó que desabafava nos dias maus, era a ela que me queixava quando as notas eram más ou quando as brigas nos recreios se intensificavam. Não tinha muitos amigos, era ela o meu porto de abrigo, a amiga e a confidente que me dizia sempre que “alcançar um sonho só depende do tamanho da vontade.” É curioso como, na minha a avó Maria José, esta frase assentava tão bem.

Casou pela segunda vez, aos 70 anos, com o primeiro namorado, a grande paixão da sua vida. Nicolau era um homem de Viseu que, depois de enviuvar, correu para Albufeira, para pedir a sua mão em casamento. A família opôs-se, acharam que estavam os dois senis. “Casar? Ele com 75 e ela com 70 anos?! Onde é que já se viu?” E casaram. Contra tudo e todos e viveram 12 anos muito felizes. “Os mais felizes da minha vida”
– disse- me a minha avó algumas vezes.
Guardo a memória de uma mulher alta, de cabelos longos, que viveu uma vida pobre e sofrida, mas que foi recompensada, na fase final da sua existência, com o amor do homem que nunca esqueceu. Talvez tenha herdado dela esta teimosia de achar sempre que tudo é possível e que, se não acontecer, é porque não quis assim tanto. Comecei a trabalhar muito cedo, aos 11 anos, a ajudar a minha mãe nas limpezas que fazia e a receber uma compensação financeira que me dava para comprar roupa, aquele bem que em toda a minha vida sempre tinha conhecido em segunda mão, herdada das primas que até tinham bom gosto, mas que chegava até mim já com os elásticos gastos e com borbotos.

Até aos onze anos não me importei de vestir roupa usada, mas, a partir daí, desenhei um plano para alterar essa situação: Trabalhar. A minha mãe ficou aflita a achar que ia desistir da escola e encontrou a solução: ia com ela, quando não tivesse aulas, ajudar a limpar a Repartição de Finanças de Albufeira e por essas horas de trabalho seria recompensada financeiramente.
Foi aqui que comecei a ganhar o gosto pelo trabalho e a perceber que, em qualquer função que desempenhamos, podemos fazer a diferença. O chefe da Repartição de Finanças, na altura, era um homem de poucas palavras, mas sensível ao facto de ver uma criança de esfregona na mão, quase maior do que ela, e muitas vezes chamava-me para me elogiar. “A parte do chão que lavaste está muito mais brilhante do que a parte da tua mãe?! Já reparaste? As pessoas que vierem cá amanhã tratar de assuntos, se pisarem este chão que tu lavaste, vão estar mais sorridentes porque vão apreciar o teu trabalho, mesmo que tenham de esperar na fila”. E eu acreditava.
Cheguei a passar lá durante o dia para observar as pessoas que pisavam o chão que eu tinha lavado na noite anterior. E sim, pareciam-me felizes. Acreditar nisto fez toda a diferença. A partir desta fase nunca mais deixei de trabalhar: cuidei de crianças, fui secretária numa agência imobiliária, vendi gelados, colaborei com um jornal, sempre a par com os estudos. Aos 15 anos, por mero acaso, fui a uma rádio, em Albufeira, pedir informações para um artigo que estava a escrever para o jornal e a partir daí tudo mudou e descobri o que queria fazer. A rádio, esse meio de comunicação misterioso, que nos faz imaginar quem está do outro lado pelo tom de voz; que nos acalma e inspira nos dias menos bons, que está sempre lá. Basta pressionar um botão.
Fiz um teste de voz e uma semana depois foi-me “oferecido” um programa, nas tardes desta rádio local. A primeira experiência foi caótica. Deveria estar três horas no ar e não consegui falar uma única vez. A voz sumiu-se. Só me lembro da música a terminar e… silêncio… as mãos nervosas a mexer no disco, a agulha a saltar (sim, na altura ainda havia gira-discos) e tudo a ouvir-se no ar. Que trapalhada. Que desilusão dei às pessoas que confiaram em mim. Olhando para trás, penso que tive um ataque de pânico, assim que abri o microfone e deixei de conseguir raciocinar. Tinha-me preparado tanto para aquele momento. Tinha escrito tudo o que ia dizer (até boa tarde). Tinha ensaiado vezes sem conta, mas o medo de falhar foi mais forte do que a vontade de superar e muito mais evidente do que a paixão pela rádio que começava a crescer. Depois deste programa fatídico, o diretor da rádio chamou-me ao gabinete e disse-me o que precisava de ouvir: “Não te escondas. Mostra-te às pessoas. Se estás nervosa, porque é o teu primeiro dia, partilha com elas. A rádio é isto.” E deu-me mais uma oportunidade. Podia ter-me mandado para casa, aconselhado a tomar um Xanax e esquecer a rádio, mas não o fez. Deu-me a oportunidade de que precisava para me recompor, perceber o que estava em falta e ir à procura disso. O que estava em falta? Maturidade para lidar com a pressão, excesso de preparação (sim, pode acontecer) e medo do desconhecido. Quem não sente medo de algo que o tira da zona de conforto? Que põe à prova as suas capacidades? Quando a exposição é grande e os holofotes estão todos em nós, ainda se torna mais difícil. Com o tempo, aprendemos a serenar, deixamos que a adrenalina dos momentos de tensão nos invada na medida certa. Com o tempo, aprendi a fazer dos nervos que sentia (e ainda sinto hoje, passados mais de trinta anos) um aliado. Sei que vou ficar desconfortável, nos primeiros segundos ao microfone, sei que vou ficar com as mãos a suar, no início de uma palestra ou de uma formação. Sei. Mas não tento combater. Aceito e avanço.
Aprendi, também com o tempo, que tudo o que precisamos, quando nos expomos publicamente, é de alguma preparação e de cinco minutos de coragem. São cinco minutos, em que a adrenalina dispara e nos manda sinais de perigo eminente, que nos fazem querer sair dali o mais depressa possível. São cinco minutos que, ou controlamos, ou deixamo-nos controlar. O caminho é escolher a primeira hipótese e controlar porque, se não o fizermos, se fugirmos, se evitarmos a exposição, vamos estar a adiar ou mesmo a perder oportunidades. Só anos mais tarde, percebi o quanto este medo da exposição, este medo de falhar publicamente, afeta tantas pessoas e limita tantos líderes. Homens e mulheres, com um vasto conhecimento nas suas áreas, com visão e determinação, mas que, na altura de comunicarem o que sabem e quem são, se boicotam, passando a perceção de insegurança ou, ainda mais grave, de desconhecimento. Não é justo que assim seja.
Haveria de traçar um plano para ajudar a combater o medo de falar em público, criando programas de formação e treino, partilhando o que aprendi na rádio com as empresas. Só que, neste momento, ainda estava longe de imaginar que tal iria acontecer, ainda lutava para combater os meus próprios medos. E teria longos combates pela frente. Depois do primeiro programa de rádio que correu mal, muitos outros se seguiram. Passei a ouvir rádio como nunca tinha ouvido até ali. Deixei-me inspirar por profissionais que estavam muito mais à frente do que eu, passei a ter a RFM – e os profissionais que a integravam – como uma referência e um objetivo a alcançar.
Dos 15 aos 22 anos, sinto que tudo o que fui fazendo teve como objetivo último conseguir um emprego na RFM, fosse qual fosse. Nestes tempos – final dos anos 80, inícios dos anos 90 do século passado – ainda se usavam cassetes áudio. Devo ter enviado, por correio, dezenas de cassetes com gravações de programas meus ao cuidado do diretor na altura, Pedro Tojal. Queria que reparassem em mim, mas nunca obtive uma resposta para além de uma carta pró-forma dos Recursos Humanos a dizer “neste momento o seu  perfil não se enquadra com as vagas disponíveis, se a situação se alterar voltamos ao contacto”.
Agarrei-me a esta frase “se a situação se alterar, voltamos ao contacto” e continuei à procura de formas para chamar a atenção. Nesta altura já estava a estudar em Lisboa, no curso de Ciências da Comunicação, já tinha passado por duas rádios, na capital, e sentia que tinha condições para entrar numa rádio nacional, nem que fosse a apresentar programas de madrugada, quase sem audiência. Vim a perceber mais tarde que, na RFM, mesmo nas horas de menor audiência são milhares as pessoas que estão do outro lado. Essa descoberta haveria de me tirar o sono durante muitas noites, mas, mais uma vez, neste momento essa realidade ainda estava longe. Aquilo que possibilitou a realização deste sonho foi um concurso que a RFM lançou, durante um Verão de 93, a todos os ouvintes. Quem quisesse ganhar uma viagem a Haia, na Holanda, para ver um concerto da Celine Dion, com tudo pago, deveria enviar uma gravação a simular uma reportagem no concerto. A mais criativa ganhava. Não estava propriamente interessada em ver a Celine Dion, mas queria muito que ouvissem algo gravado por mim, que tomassem noção da minha existência e, por isso, pus mãos à obra. Com a ajuda do técnico da rádio onde estava na altura – uma nova versão do Rádio Clube Português – criámos dois minutos de reportagem onde – no interior do recinto em Haia – ia relatando o que estava a acontecer no concerto, com música de fundo e efeitos sonoros que simulavam o ruído das pessoas em êxtase e o eco de um grande espaço. Tinha tanta certeza de que iria ganhar que passei a tarde sentada em casa ao lado do telefone (na altura ainda não tinha telemóvel) à espera que ele tocasse.
Ao fim da tarde tocou e, do outro lado da linha, uma voz dava-me a notícia de que era eu a vencedora e de que ia viajar até Haia para ver a Celine Dion em concerto. Mais uma vez, não era isso que me deixava a flutuar no ar de alegria. Era o facto de saber que iria acompanhada por pessoas da RFM, com quem poderia conversar e contar o sonho que tinha de um dia vir a trabalhar com eles.
Quando falo aos meus filhos sobre isto, sublinho a importância de agarrarmos as oportunidades que a vida nos dá. O que a vida me deu de concreto foi uma viagem e um bilhete para um concerto, mas aquilo que retirei da experiência foi muito mais: promovi-me, mal ou bem (de certeza com muitas falhas) mas devo ter feito um pitch (na altura não se chamava assim) que fez com que António Jorge – a pessoa da RFM que me acompanhou e hoje meu colega na Renascença – chegasse a Portugal e fosse falar sobre mim ao diretor. Uma semana depois do concerto da Celine Dion em Haia, estava sentada num gabinete na Rua Ivens, em pleno Chiado, a ser entrevistada por Pedro Tojal para aquele que veio a ser o meu emprego de sonho. Estava finalmente a viver uma meta alcançada quando entrei na RFM pela primeira vez em agosto de 94 como locutora. Tive a sorte de encontrar uma segunda família que me orientou durante os anos que se seguiram, com quem criei laços fortes e que ainda hoje recordo como os companheiros dos anos mais fascinantes que vivi. Onde tudo era novidade, onde cada conquista era celebrada rodeada dos maiores profissionais da rádio em Portugal que me ensinaram tanto: o diretor Pedro Tojal, António Jorge, Teresa Lage, João Chaves, Paulo Fragoso, Júlio Heitor, José Coimbra, Paulino Coelho, Marcos André, Joaquim Cannas.
Mas também todos os que faziam parte dos bastidores e que foram cruciais neste crescimento: Ana Margarida Oliveira, Helena Galamba, Maria José Pardal, João Campelo, António Antunes. Nunca saberão o quanto foram determinantes para me ajudar nesta fase com muitas orientações e alguns ralhetes.

Os anos que se seguiram foram de evolução, de aprendizagens com os melhores nesta arte de estar perante um microfone e ter sempre algo interessante para dizer. Admirava- lhes a capacidade de improviso, o controlo nos momentos de tensão, a graciosidade com que comunicavam, as suas vozes aveludadas que parecia conhecer de outras vidas, a intimidade que criavam com a audiência – milhares de pessoas que nunca os conheceram nem chegariam algum dia a conhecer, mas que viam neles amigos de longa data. A rádio é um meio de comunicação maravilhoso, quase mágico. Anos mais tarde, teria pessoas a abordarem-me porque se recordavam das histórias que contava aos microfones. Histórias banais: mudanças de casa, peripécias nos primeiros tempos da maternidade, as inquietações habituais de uma jovem adulta. Histórias pessoais, mas que são tão comuns que criam este sentimento de identificação que as torna universais, na medida em que nos aproximam enquanto seres humanos.

Esta foi uma descoberta fundamental para dar início a uma nova fase da minha vida, quase vinte anos mais tarde quando descobri que, para além da paixão da rádio, tinha paixão por ensinar comunicação e que as histórias de cada pessoa são informação preciosa para se comunicarem ao mundo. Os anos na RFM foram magníficos. Os dez anos em que apresentei o “Café da Manhã”, com o José Coimbra tiveram tanto de desafiantes como de hilariantes. Lembro-me de andar pelo país semanas inteiras a fazer o programa ao vivo e de chegar a casa ainda com dores musculares de tanto rir. Aprendi a trabalhar em equipa, a gerir a pressão e a resolver conflitos, competências que são fundamentais em qualquer profissão que escolhermos. Ao fim de uma década, quando eu e o José Coimbra saímos do programa, fiquei sem chão. Chorei durante três dias e três noites e a seguir agi. Senti que estava na altura de pensar num plano B. Honestamente tinha a certeza de que os meus dias na rádio estavam contados e agarrei-me à boia de salvação que mais sentido me fazia: ensinar comunicação, partilhar tudo o que tinha aprendido durante a minha já longa carreira. Mas como? Se só de pensar em falar em público ficava com tremores.
O que se passou, a seguir, foi consequência do pânico inicial: investi todas as poupanças em formação. Fui para os Estados Unidos aprender public speaking, fiz uma pós- graduação e uma certificação em coaching, inscrevi-me num grupo de networking para aprender a ser empresária e atirei-me para fora de pé.

Pouco tempo mais tarde, escrevi o meu primeiro livro sobre comunicação “Fale menos comunique mais” e as coisas foram acontecendo, os clientes foram aparecendo e – a maior revelação de todas – aquilo que ensinava tinha impacto nas pessoas que saíam diferentes, depois de umas horas a refletir e a ajustar a forma como comunicavam. Saíam diferentes, dispostas a experimentar novas abordagens e técnicas muito práticas, muito simples. Nem sempre o mais simples é o mais fácil e, por isso, ainda hoje continuo com esta missão: desenvolver a competência da comunicação a quem dela necessita para ter uma vida mais gratificante e feliz. Hoje já não estou sozinha, tenho uma equipa de seis pessoas que está sempre comigo e dezenas de formadores que me ajudam nas duas academias que fundei: a academia “Fale menos, comunique mais” (para quem quer desenvolver os fundamentos da comunicação) e a academia “Fale menos, influencie mais” direcionada para quem ocupa cargos de liderança.

Acredito no poder da comunicação e na magia das histórias como forma de tornar mais simples e claro o que queremos transmitir, mas, acima de tudo, como a forma mais simples de nos ligarmos aos outros. Should Communicate to connect – the stories you shloud tell é o nome da TED talk que fiz organizada pela Universidade de Lisboa e onde sublinho esta ideia, através de estudos científicos e, acima de tudo, através de histórias que vou partilhando, tal como acabei de fazer aqui nestas páginas.

Por isso deixo-lhe cinco estratégias que me ajudaram a crescer, enquanto líder e empreendedora, estou certa de que terá as suas. O importante é sermos fiéis ao que acreditamos e ao que nos torna melhores:

1) deixe-se inspirar pelas pessoas que são/foram importantes na sua vida;
2) tenha cinco minutos de coragem e arrisque;
3) não pare de aprender;
4) tenha o seu plano B;
5) conte as suas histórias.