Após 46 anos e seis mandatos comandados por homens, em fevereiro de 2022 surgem as primeiras candidatas mulheres à liderança da Universidade dos Açores. As primeiras eleições disputadas exclusivamente entre mulheres, onde Susana Mira Leal, a 28 de junho, toma posse como reitora da Instituição.
O seu percurso na UAc tem sido atravessado por desafios e oportunidades. Foi diretora do então Departamento de Ciências de Educação quando foi convidada em 2014 para pró-reitora para as Relações Externas, Sociedade e Formação Complementar. Após quatro anos de exercício e de verdadeira entrega e sentido de missão, foi convidada assumir o cargo de vice-reitora para a Comunicação, Relações Externas e Internacionalização. Após oito anos de entrega, surge a oportunidade de assumir as funções de reitora – a primeira mulher assumir este cargo na UAc. Toda o percurso contado na primeira pessoa.
O gosto pelo ensino trouxe-me até aqui. Aos 4 anos já queria ser professora, aos 24 concretizei esse objetivo. O ensino das línguas foi sempre o meu principal foco de interesse. Primeiro o Inglês, língua que aprendi cedo; depois o Português, cujo ensino aprendizagem me parecia na altura mais desafiador e diversificado, convocando um leque variado de conteúdos e competências de natureza linguística e literária, ao longo dos 6 anos de escolaridade que lecionava, do 3.o ciclo ao secundário. Na verdade, agradava-me já então a irrepetibilidade de cada aula, a singularidade de cada turma, o recomeço a cada ano letivo. Ainda hoje dispenso a rotina e gosto quanto baste do previsível.
A carreira académica nunca fez parte dos meus planos. Cruzei-me com essa oportunidade quando frequentava o Mestrado em Supervisão Pedagógica da Universidade de Aveiro. 2000 foi o ano de viragem a vários níveis. Fui mãe, concluí o mestrado e assumi um lugar de docente no Departamento de Ciências da Educação da Universidade dos Açores, numa altura em que o doutoramento ainda não era requisito de acesso à carreira universitária, mas seria o meu próximo passo.
Concluí o doutoramento em Educação. Escolhi uma especialidade do meu interesse e em sequência da minha formação de base: a Metodologia do Ensino do Português. Ser professora continuou a ser uma missão fundamental. No processo pedagógico realizo-me profundamente enquanto pessoa e profissional. E a carreira académica acrescentou-me a responsabilidade de contribuir de forma mais substantiva para a formação de outros professores e para a investigação sobre a aprendizagem e a docência.
A formação de professores passou então a ser uma das minhas principais responsabilidades. Embora seja uma das missões fundamentais e estratégicas do ensino superior, na verdade não é tarefa suficientemente valorizada. Menos ainda na atualidade, em que o conhecimento, a riqueza e o poder se apoiam cada vez mais na tecnologia, e o mercado é global; em que a formação de engenheiros e informáticos parece prioritária, e a robotização, a cibersegurança, a realidade aumentada, a internet das coisas, a inteligência artificial e a ciência de dados dominam a agenda política e socioeconómica.
Da menor valorização da formação de educadores e professores no ensino superior dá, de resto, testemunho, por exemplo, o facto de os cursos na área da educação continuarem a ser dos menos ponderados na fórmula de financiamento do ensino superior, mesmo em face da grave crise de recursos humanos qualificados para a docência em Portugal e dos alertas da Unesco para a falta de cerca de 70 milhões de professores em todo o mundo.
Sem a valorização da formação de professores, e sem o reconhecimento público e político da profissão e uma resposta cabal às expectativas e demandas da classe por melhores oportunidades de progressão na carreira, valorização salarial, menos burocracia e mais tempo para o processo educativo, estabilidade e bem-estar pessoal e familiar, continuaremos a assistir ao abandono precoce da profissão e a ouvir o ruído das greves nas ruas, em Portugal como noutras latitudes, da Europa aos Estados Unidos da América. E o reforço e renovação da classe correrão tristemente atrás de gravoso prejuízo. Não esqueçamos que, sem professores, lamentaremos não só a falta deles, como de engenheiros e informáticos, médicos e enfermeiros, gestores, jornalistas, biólogos, químicos, físicos, historiadores, …
Reconheço, pois, a importante e exigente área de especialização que abracei, embora o tempo que venho dedicando à mesma de há 11 anos a esta parte venha decrescendo progressivamente, por força das responsabilidades que tenho assumido ao nível da gestão universitária. Se algo me faz falta no exercício destas funções é precisamente a interação pedagógica com os estudantes.
A par da docência, o exercício da liderança tem-me acompanhado na vida. Antes mesmo de me iniciar na carreira universitária, já enquanto professora na escola secundária onde me efetivei. Mas os desafios e a exigência têm vindo a crescer no ensino superior. Quase metade da minha vida na academia tem sido dedicada à gestão de topo. Fui diretora do Departamento de Ciências da Educação, Pró-reitora para as Relações Externas, Sociedade e Formação Complementar, Pró-reitora para as Relações Externas e Extensão Cultural, Vice-reitora para as Comunicação, Relações Externas e Internacionalização, e agora Reitora.
Como a entrada na carreira universitária, esse também não foi um percurso planeado. Aconteceu. Ou melhor foi acontecendo, com naturalidade e serenidade. A ciência e o ensino superior são terreno fértil para quem se dedica e entusiasma com o trabalho, e enfrenta com determinação e resiliência os desafios e oportunidades. Creio que é isso que tenho feito. A experiência, o exercício de comprometimento e responsabilidade, o bom trato e a valorização do outro fazem o resto.
Tenho a sorte, e a satisfação, de fazer o que gosto e de poder viver disso, na docência e na investigação, como na extensão e na gestão. Agradeço sempre o apoio e a confiança de quem ao longo do tempo me tem reconhecido qualidades e proporcionado desafios, e assumo diariamente a missão de me superar. Não o faço para os outros ou pelos outros, senão por mim mesma e para alcançar os objetivos que traço e honrar os compromissos que assumo.
Perguntaram-me em tempos se ser mulher influi na forma como vivencio a liderança. Devo confessar que não sei. Só me conheço nessa condição e nunca experimentei nenhum cargo em qualquer outra. Por isso não tenho termo de comparação. Também nunca me senti propriamente sob os holofotes por ser mulher. Ou não o valorizei.
Reconheço, todavia, que persistem muitas formas de discriminação na nossa sociedade, que carecem de um firme repúdio e de um exercício continuado de educação e cidadania para as combater. E as instituições de ensino superior têm responsabilidade maior nesse desiderato. Pessoalmente, procuro sempre partilhar esses valores, na sala de aula e na intervenção pública, ao nível científico como institucional. Acredito firmemente no poder da diversidade, da cooperação e da troca de experiências como motores do progresso académico e social.
E a mudança também se faz pelo exemplo. A liderança na universidade vai muito para além da gestão administrativa; é um compromisso com a construção de um futuro melhor, baseado no conhecimento, na justiça e na solidariedade. E é com esse espírito que procuro liderar a Universidade dos Açores, reforçando a busca pela excelência e o aprofundamento do seu impacto positivo na sociedade.