O contexto de pandemia pela COVID 19 que estamos a viver a ideia de que o mundo está na “corda bamba” deixou de ser abstrata. De facto, os problemas que nos conduziram a esta pandemia não são novos … e vem por isso relembrar-nos que a nossa saúde e a saúde do planeta estão interligadas, há Uma Só Saúde (One Health) o que nos interpela a uma análise mais integrada e abrangente do que está realmente em causa: o problema não é um novo vírus (mais um) mas o que nos conduziu a ele!
Alexandra Azevedo ,
Vice-Presidente da Quercus
Temos de mudar…
Mas como? Podemos mudar por dois motivos: por consciência ou por fatores que não controlamos. Esta pandemia está a forçar-nos para a segunda hipótese. Com mais ou menos medidas para conter a pandemia e para a recuperação pós-pandemia, teremos sempre pelo caminho fatores que não controlamos que nos irão moldando a trajetória.
Uma lição que também devemos retirar da situação desta pandemia, é que toda a sofisticação tecnológica que carateriza a nossa sociedade não nos protegeu, bem pelo contrário, é precisamente a desflorestação e a consequente perturbação do delicado equilíbrio ecológico, que está na origem de muitas das novas doenças que têm surgido nas últimas décadas. O impacto na nossa saúde é maior quanto mais fatores humanos se conjugam, como a poluição atmosférica e a poluição eletromagnética (eletrosmog).
Não será uma forma de nos obrigar a pensar no que realmente mais interessa na nossa vida e regressar à nossa essência?
Concretamente, em Portugal, há muito que a nossa floresta primária … a nossa “Amazónia”… foi destruída, e com um território humanizado praticamente a 100%. O que nos resta?
O confinamento forçado por esta pandemia revelou que apesar da drástica redução nas emissões de gases com efeitos de estufa, e de uma melhoria na qualidade do ar, não houve uma diminuição da concentração de dióxido de carbono na atmosfera! Portanto, apenas com o sequestro de carbono será possível minimizar de forma segura, e mesmo reverter, os efeitos das alterações climáticas, e para isso não precisamos de inventar nenhuma tecnologia “milagrosa”… a natureza faz isso por nós!
A importância de um ambiente saudável e de mais espaços verdes, e com uma conceção mais natural, ganham agora ainda maior pertinência, mas teremos de ultrapassar políticas públicas e práticas enraizadas que nos empurram na direção oposta à que pretendem enunciar e defender.
Relativamente ao uso de pesticidas em áreas urbanas e outros espaços públicos, como vias de comunicação, em particular dos herbicidas, com destaque para o glifosato, vulgarizou-se devido ao seu alegado “baixo” custo e “facilidade” na gestão, mas como o próprio nome indica são biocidas, ou seja, matam vida, pelo que os seus efeitos manifestam-se nos seres vivos em geral, desde os seres microscópicos a espécies bio-indicadoras, como os insetos e anfíbios, até nós, humanos.
Mas, se estas substâncias estão autorizadas, então, é porque são seguras, verdade? A realidade demonstra-nos cada vez mais que não será assim e que na verdade os pesticidas mais seguros são… aqueles que não são utilizados! De facto, aumentam as referências científicas sobre os seus danos no ambiente e na saúde.
O argumento do “baixo custo” revela-se ilusório. É precisamente uma perceção mais alargada dos reais custos dos pesticidas que muitos autarcas começaram a assumir que “… a saúde das gerações futuras e um ambiente seguro não podem ser comparados com uma limpeza artificial dos espaços públicos.” (Daniele Chiarioni, presidente da câmara municipal de Occhiobello – Itália). Assim, a proteção do ambiente, da saúde pública e da saúde dos funcionários dos serviços de higiene pública e espaços verdes tornam-se prioritários face a outras opções. Um pouco por todo o mundo, têm surgido iniciativas e dinâmicas em prol das alternativas a estes produtos tóxicos. Na agricultura, o modo biológico e outras práticas agroecológicas, como a biodinâmica, permacultura e agroflorestal, vão conquistando adeptos e mercados. Em áreas urbanas há uma mobilização para que se tornem livres de pesticidas. Esta tendência, por sua vez, insere- se numa perspetiva mais alargada de espaços públicos mais produtivos e multifuncionais, esbatendo-se a fronteira entre campo/ cidade ou meio urbano/meio rural, integrando políticas transversais, como a recuperação da biodiversidade, restauro ecológico de ecossistemas, respostas à crise climática, promoção da economia local, reinserção social e promoção da saúde pública e qualidade de vida.
O testemunho da Campanha Autarquias sem Glifosato/Herbicidas
A Quercus tem recebido ao longo dos anos inúmeras queixas e denúncias da aplicação abusiva e inadequada dos pesticidas, em particular, de herbicidas em áreas urbanas, ou simplesmente pelo sentimento dos seus riscos para o ambiente e a saúde por parte de muitos cidadãos.
De modo a alterar a situação, foi lançada uma campanha dirigida às autarquias locais, no dia 20 de março de 2014, aproveitando a “Semana sem Pesticidas”, um evento internacional ao qual se associam muitas organizações, como a PAN (PesticideAction Network), da qual a Quercus é membro, desafiando-as a subscrever o Manifesto Autarquia sem Glifosato/Herbicidas.
Com esta campanha há um «antes» e um «depois»! De uma aplicação generalizada de herbicidas pelas autarquias, passou-se ao questionamento desse modelo de gestão/manutenção dos espaços públicos e aquelas cujos autarcas têm maior sensibilidade e convicção têm sido as pioneiras no abandono total destes tóxicos.
A cada ano aumenta o número de autarquias que assumem publicamente a sua opção pelo abandono do glifosato e outros herbicidas, sendo essa informação assinalada no mapa da campanha atualizado regularmente, e há um número indeterminado de autarquias que estarão em transição, uma vez que não há um registo público destes casos.
Mas, há um longo caminho a percorrer e um duro revés a esse desígnio em Portugal. Com o ambiente de pânico instalado no país na sequência dos grandes incêndios de 2017, agravado pela comunicação inadequada do governo e interpretação abusiva da lei (Decreto-Lei n.º 10/2018), está marcha uma desmatação indiscriminada, abate de árvores em precedentes na história recente do nosso país, que vem em sentido oposto à abordagem sem herbicidas, além da contradição com uma real mitigação das alterações climáticas, aumentado na realidade a vulnerabilidade ao país a fenómenos climáticos extremos, e consequente aos fogos incontroláveis! Uso de pesticidas, a cultura arboricida e o fogo estão a conduzir-nos a um autêntico ecocídio! É indispensável por isso uma ação coerente e integrada para que o conceito One Health – Uma Só Saúde seja realmente interiorizado e aplicado.
Qual a alternativa ao glifosato e outros herbicidas? E quais os seus custos?
Quanto às alternativas, não se trata de substituir o glifosato, ou outro herbicida sintético, por métodos alternativos sob pena de sobrecarga por vezes excessiva do orçamento da autarquia.
O que está em causa é um novo paradigma na gestão dos espaços, que pressupõe a aceitação de algumas ervas e a cooperação com a natureza pela plantação/sementeira de plantas, de preferência de espécies autóctones, para abafamento de plantas espontâneas com caraterísticas indesejadas, redimensionando as áreas pavimentadas e reservando os meios alternativos (manual, moto manual, mecânico e térmico) para o controlo que seja indispensável fazer. A primeira lição das autarquias europeias, algumas das quais já não utilizam herbicidas há décadas, é: comunicar antes de agir! Daí a importância na definição de uma estratégia de comunicação sistemática assim que é tomada a decisão política na nova abordagem na gestão dos espaços, através dos mais diversos meios. Em particular, através de sinalética e de cartazes para uma maior aceitação de algumas ervas espontâneas,
os cidadãos compreenderem os motivos da mudança na paisagem urbana. Facilitar a adequada perceção do público, e envolver a população no processo, permite melhorar a sua aceitação evitando-se queixas e desvio de recursos em gerir permanentemente “estados de crise”!
O abandono dos herbicidas pode aumentar os custos diretos das autarquias com a deservagem a curto prazo, mas a médio-longo prazo os custos poderão ser iguais, ou mesmo inferiores, aos do uso de glifosato à medida que se fazem ajustes na conceção dos espaços, sendo que há um benefício imediato para o ambiente e na saúde pública com o seu abandono. Formação e cooperação são elementos fundamentais nesse
percurso.
Estas lições a reter e testemunhos chegam-nos através da campanha europeia Localidades sem Pesticidas (Pesticide Free Towns), da PAN – Pesticide Action Network, precisamente com o objetivo de reunir e partilhar informação sobre abordagens e práticas livres de pesticidas em várias autarquias europeias.
Desafios e oportunidades e um convite à AÇÃO! Apesar da abordagem sem herbicidas e mais natural colocar alguns desafios, as vantagens e oportunidades são inúmeras pelo que vale a pena todos os esforços para as alcançar. Um dos pedidos da campanha é a mobilização dos cidadãos, pois os responsáveis autárquicos serão mais sensíveis quanto maior for a consciência e pressão da população, e também para facilitar a discussão e a implementação de algumas soluções, uma vez que a cooperação com a população é importante para melhores resultados. Assim, têm-se gerado vários movimentos cívicos em torno desta causa que procuramos dar apoio, nomeadamente na preparação de propostas concretas às respetivas autarquias para a renaturalização e na partilha na gestão de alguns espaços públicos. Cada cm2 conta! E somos todos necessários neste processo. Por outro lado, a campanha disponibiliza um programa de formação às autarquias dirigido aos técnicos, operacionais, empresas concessionárias. Se não respeitarmos a natureza e não dermos a devida importância à infraestutura verde… a natureza não desiste de procurar novos equilíbrios para manter pelo menos a funções vitais, que são cobertura total do solo e fotossíntese! A tentativa de permanente controlo da natureza, que além de um desperdício está condenada ao fracasso! Pior que o erro é insistir no erro!
No contexto da nova Estratégia Europeia para a Biodiversidade, com o lema muito oportuno que é “Trazer a natureza de volta à nossa vida”, da Década do Restauro dos Ecossistemas 2021–2030 e de este ano de 2021, ser também ano de eleições autárquicas, impõe-se acima de tudo inverter o ciclo de mais perturbação e destruição da Natureza e refletir na ação local a prioridade às «Soluções Baseadas na Natureza», à criação de matas municipais que recriem o bosque natural há muito perdido! Apesar de algumas condicionantes, o poder local tem autonomia e capacidade de liderar processos de mudança, como o demonstram as autarquias pioneiras no abandono dos herbicidas. É chegado o momento de um reforço do trabalho em rede para uma regeneração efetiva. É chegado o momento de interiorizar as nossas escolhas para melhores decisões sobre onde investir a nossa energia vital! Só podia terminar com um convite à ação! Que localmente se criem mais dinâmicas, mas articuladas, e que se juntem todos os que possam contribuir para consolidar e expandir este programa de formação, alargar parcerias na construção de uma rede de formadores em sintonia conteúdos e na melhor forma de os transmitir. Todo o processo de mudança representa um desafio, mas a cooperação e trabalho em rede dos vários setores da sociedade facilitará uma transição benéfica. É com uma postura proactiva que a Quercus se mantem disponível para fazer parte desta mudança!