Nascida em Évora, Custódia Rebocho, rumou aos três anos para a capital e, posteriormente, para uma zona ribeirinha, a sul do Tejo, onde reside e criou família. As raízes familiares situam-se no Alentejo, mas as profissionais vão ao encontro do que mais gosta: o mar, a leitura e as pessoas.
“O mar, através da seara, mesmo no interior do Alentejo, foi sempre um elemento presente na minha vida. Parece loucura, não é? Sabe que temos uma sensação líquida se contemplarmos uma seara a ondular num final de tarde? É como se estivéssemos à beira mar… mas esta minha relação com o mar não se esgota na contemplação! Quando era adolescente via todos os documentários do Cousteau, tinha grandes preocupações com as alterações climáticas, com o buraco de ozono e com a poluição, preocupações que, no início da década de 80, me levaram a integrar um grupo de jovens estudantes em ações de limpeza das praias da Costa da Caparica.”
Parte das férias de verão eram passadas entre a praia e o Alentejo, com a leitura de permeio. Das então longas viagens, pela Estrada Nacional, veio-lhe o gosto por conduzir, herdado do pai, também ele um apaixonado pela condução. Aos 5 anos, sentava-a ao colo e passava-lhe o volante para que pudesse sentir o carro e a estrada durante algum tempo. Nessas viagens, havia sempre uma paragem algures para essa brincadeira, mas sempre com o olhar ansioso da mãe… Esta oportunidade de participar no evento de Líderes Empresariais Femininas num roteiro de 3 dias pela mítica Estrada Nacional 2, a conduzir diversos modelos da Mercedes, constituiu uma experiência de condução inesquecível, diferente, e que lhe recordaram esses tempos. “Há experiências de condução que se tornam especiais. Eu adorava conduzir um camião TIR! Ainda não perdi a esperança de concretizar esse desejo. Gosto de carros grandes, potentes, adoro sentir o domínio da máquina sobre a estrada – diz. Saio ao meu pai que conduz qualquer carro sem problemas, ainda que, quando lhe falamos de marcas, ele costuma dizer «ah, então, há os Mercedes e os outros»”. Ainda assim, o primeiro carro foi um já antigo e potente Subaru, amarelo de estofos pretos, em pele, com um rádio de ondas médias: “Era fantástico, nervoso, era sempre a primeira a arrancar nos semáforos! Era o carro mais icónico no estacionamento da escola. Um dia, por brincadeira, os meus alunos pegaram nele e mudaram-no de sítio. Como sou muito distraída, nem me apercebi que estava num sítio diferente de onde o havia deixado. Foi um desapontamento para eles, coitados, vieram ter comigo a perguntar se não tinha achado nada de estranho e contaram-me o que tinham feito. Mas o Subaru amarelo era impossível de perder de vista.”
DA PAIXÃO PELAS LETRAS AO MUNDO DOS NEGÓCIOS
A leitura é outra paixão que a acompanha desde muito cedo. “O primeiro livro «grande» que li foi Coração, de Edmondo de Amicis. Andava na quarta classe tal como o protagonista do romance. Lembro-me de me sentir toda ufana por ter lido e com- preendido todas as palavras. Também me lembro que a maior palavra que li, quando estava a aprender, foi a palavra «imediatamente»! Aos 13 anos li Ana Karenina, de Tolstoi e quando entrei para a Faculdade já tinha lido bastantes clássicos – esses e outros que não prestavam para nada, a não ser para refinar o gosto, quando é o caso.”
Naturalmente, o percurso académico teve a ver, sobretudo, com estes dois gostos. Na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, concluiu a Licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas, em meados dos anos 80, a partir da qual ingressou na docência, até hoje.
O mundo da docência, no qual se entrecruzam disciplinas, indivíduos e realidades sociais diferentes, despertou-lhe o interesse para o estudo da Sociologia e da Antropologia. “Sempre achei fascinante a forma como as pessoas se organizam, como seguem determinados indivíduos e não outros, como funcionam isoladas ou em grupo.”
Na década de 90, decidiu fazer Mestrado em Sociologia e Antropologia, na Universidade Nova de Lisboa, que considera ter sido uma mais-valia para a sua imersão no mundo empresarial.
AS INSPIRAÇÕES QUE SURGIRAM EM SALA DE AULA
“A profissão de professor é para quem gosta de pessoas e de aprender. Quando ensinamos, aprendemos sempre. Foi esta predisposição para a aprendizagem que, apesar dos muitos receios e apreensões, me impulsionou como empreendedora, já depois dos 50 anos. As mulheres, por exemplo, e há tantas à nossa volta com histórias de superação e de concretização incríveis, são inspiradoras. É só saber olhar. Algumas das minhas alunas adultas africanas são a minha fonte de inspiração. Elas personificam os conceitos de resiliência e generosidade com tudo aquilo que conseguem fazer. Emigradas, muitas vezes sem o marido, cuidam dos filhos, trabalham horas a fio e chegam às aulas com um sorriso desarmante. Às vezes adormecem… e pedem desculpa, esfregam os olhos, concentram-se e lutam para aprender.”
Sem formação em gestão e sem qualquer experiência no mundo dos negócios, foram as histórias de vidas cruzadas em sala de aula que impulsionaram Custódia Rebocho para o mundo dos negócios.
“A importância da qualidade da água e a garantia de existência de alimento são pilares essenciais para o desenvolvimento da humanidade. A Bluegrowth é uma empresa empenhada na transformação digital dessa parte do Planeta que está coberta por água. Estar rodeada de mulheres que fintaram a fome, a sede, a doença e a guerra deu-me vontade de me juntar a elas, participar numa solução, numa receita que desse corpo a um projeto empresarial empenhado na qualidade de vida das pessoas. A água é vida!”
Em todo o Mundo, cerca de três em cada dez pessoas (2,1 biliões de pessoas) não têm acesso a água potável. Irrigar os campos para combater a fome, purificar a água para combater as doenças, gerar rendimento para combater a pobreza, empregar mulheres para combater a desigualdade, são compromissos assumidos na carta de valores que norteiam a atividade da Bluegrowth.
A MISSÃO DA BLUEGROWTH NA GERAÇÃO DE VALOR SOCIAL
Em 2018, a Bluegrowth embarcou num desafio de transferência tecnológica em parceria com o Massachusetts Institute of Technology (MIT) que consiste num sistema autónomo de dessalinização e purificação de água para consumo humano e para a satisfação das necessidades das atividades agro- pecuárias.
“A importância do acesso a água potável, em qualquer lugar, é uma das linhas de ação da Bluegrowth que tem muito a ver com as histórias de vida que se cruzaram na minha sala de aula e com o significado e o valor social da minha ação. As OffGridBox são contentores cobertos por painéis solares, que garantem autonomia na purificação ou dessalinização de água, para irrigar os campos e hidratar os animais. Conseguem satisfazer as necessidades de consumo de água potável de mais de 1500 pessoas, quer em contexto de isolamento quer em situações de catástrofe. O acesso a água de qualidade é a principal arma para o combate à propagação de doenças como a cólera, tifo, febre amarela e outras, todas na origem da elevada mortalidade de países em de- senvolvimento.”
Com mais de 2000 unidades espalhadas, na maioria, pelo continente africano, as OffGridBox integram uma ação focada na geração de valor social que conta com o reconhecimento das Nações Unidas, não só pela importância que tem na disponibilização de água potável em qualquer parte do Mundo, mas também pela capacidade de gerar emprego. Cada instalação de uma OffGridBox tem a seu cargo uma cuidadora: “São mulheres bem integradas nas comunidades e predispostas a trabalhar para resolver os problemas das pessoas que as rodeiam. Cada uma destas unidades é um modelo de negócio para estas mulheres.
O nosso papel é treiná-las para saberem operar as tecnologias e, sobretudo, para aprenderem a gerir o negócio do abastecimento de água à sua comunidade. É possível amortizar o investimento e gerar rendimento para uma mulher a vender água potável, a quem não a tem, pelo preço diário de duas bananas por pessoa. Mais barato que o custo atual do acesso a águas contaminadas nos países em que atuamos.”
A FUNÇÃO ALIMENTAR DO MAR E AS GERAÇÕES VINDOURAS
Em edições anteriores da Revista Liderança no Feminino e em diversas comunicações públicas, os responsáveis da Bluegrowth têm destacado a proteção dos oceanos e o desenvolvimento da função alimentar do mar como uma das ações da empresa, alinhada com os objetivos de desenvolvimento sustentável preconizados pelas Nações Unidas.
“Estes princípios nortearam a estratégia da empresa com uma forte aposta em ações de transformação digital no setor da aquicultura. É nossa responsabilidade contribuir com progressos tecnológicos que nos permitam cultivar aquilo que extraímos dos oceanos, ao invés de sermos os eternos caçadores. A alimentação das próximas gerações não pode estar assente no esgotar dos recursos marinhos. Além disso, a saúde dos oceanos é vital para o futuro da humanidade.”
Sistemas avançados de monitorização por satélite, sensores inteligentes, robótica subaquática e sistemas de suporte à decisão, integram o portfólio da Bluegrowth para o sector da aquicultura, mas também para a gestão ambiental de ecossistemas naturais e outras atividades económicas que utilizam ou impactam com a qualidade do meio aquático. No entanto, apesar dos responsáveis da Bluegrowth serem fervorosos defensores do setor aquícola, não escondem os riscos e preocupações sobre esta atividade e a importância da preservação dos ecossistemas marinhos: “Toda e qualquer atividade humana tem impactos positivos e negativos sobre o meio que a rodeia. Especula-se demasiado sobre a aquicultura. Há demasiado ruído a poluir a necessidade estratégica de desenvolvimento do setor aquícola. Como é obvio, a intensificação de qualquer sistema de produção tem riscos. A ação da Bluegrowth concentra-se na mitigação desses riscos através da democratização no acesso a tecnologias de ponta. Estas tecnologias têm como função otimizar os sistemas de produção, em harmonia com o ambiente que os rodeia. Nada nos serve ter nos oceanos a garantia da segurança alimentar do mundo se não houver cuidado em garantir a sua saúde. As tecnologias em que investimos têm como função apoiar produtores responsáveis na produção sustentável de alimento em contexto aquático.”
SER MULHER EM DIFERENTES CONTEXTOS
“Escolhi ser fotografada em fato de mergulho e de saltos altos, pois é uma dupla metáfora da Bluegrowth e de mim. A Bluegrowth é uma empresa que tem uma ação em diversos contextos. Tão depressa estamos a operar em terra, numa barragem, no deserto, num tanque de aquicultura, no mar ou num moderno e luxuoso edifício de escritórios em grandes metrópoles como Nova Iorque. A tecnologia é a nossa base, mas os locais onde operamos vão dos mais rudimentares aos mais formais. Esses cenários exigem-nos uma capacidade de adaptação, quer material, quer humana e nos quais nos assumimos como parte desse todo. Enquanto mulher, creio que esta fotografia também simboliza a multidiversidade de tarefas a que o mundo feminino tem de responder, tal como o seu empoderamento. A equidade é algo por que temos todos de lutar, com a assunção das diferenças e tirando partido daquilo que as características comuns a cada uma pode acrescentar aos projetos que lideramos. Não podemos esquecer que a facilidade que as mulheres possuem em percecionar as necessidades do outro e as oportunidades que geram na resposta a essas necessidades são a base comum à prosperidade de qualquer negócio.
A experiência destes 3 dias na estrada com diversas empresárias foi extraordinariamente enriquecedora. Se nas leis da física os opostos se atraem, neste caso acho que foi a semelhança. Três gerações diferentes com pontos em comum, a começar pelo sexo e a terminar pelos postos que ocupamos. Ser líder não é uma questão de posto, é uma questão de postura, de condição de vida, de atitudes e de valores que norteiam a nossa conduta!”