Autovalorização: sim ou não?

Manuela Doutel Haghighi, DIRETORA DE CUSTOMER SUCCESS NA MICROSOFT, CO-CHAIR DO WOMEN NETWORK, E CURADORA DA LUSOFONIA DIGITAL

Historicamente, a grande maioria de nós foi educada a ser obediente perante os mais velhos, respeitando hierarquias e títulos associados a quem “naturalmente” deveria ser diferenciado dos outros pela sua idade, pela sua posição de autoridade, pelo seu estatuto social, o que na maioria dos casos era sinónimo de estatuto numa sociedade patriarcal.
Também nos fizeram acreditar que o nosso papel enquanto crianças e estudantes, era ser um boa aluna, de preferência obediente e calada na escola e em casa. E quantas de nós não fomos punidas por arriscar a ser diferente, a pensar diferente, a questionar o que estava estabelecido, enfim, em geral, quantos de nós fomos castigadas por simplesmente arriscar?

E assim, ao longo dos nossos anos formativos, fomos encorajadas a seguir um código de conduta e costumes morais, admissíveis perante as expectativas duma sociedade dos bons costumes. Leiam-se nas entrelinhas que fomos encorajadas a sermos pessoas boas, boas pessoas, pessoas de bem.

A maioria das organizações, inclusive das empresas das mais pequenas ás maiores, também foi historicamente estruturada de tal forma, promovendo a hierarquia, a autoridade e um poder no cume, e estabelecendo, para além dos regulamentos comuns de qualquer empresa, códigos de conduta informais que em quase tudo refletia o espelho da sociedade.

Por exemplo, alguém é capaz de justificar quem decidiu que se devia vestir um fato para o escritório? Mais alguém sabe porque é que alguns têm direito a carro da empresa e outros não quando todos se devem deslocar ao local de trabalho? Alguém consegue explicar, ainda hoje, e em particular em Portugal, o porquê dos títulos de “Senhores Doutores ou Senhores Engenheiros” num local de trabalho em que todos devem trabalhar em equipa e quem está lá em cima depende tanto dos que estão em baixo, como os de baixo dos que estão em cima?

Crescendo em tais sociedades, a grande maioria dos jovens começaram as suas carreiras acreditando que se continuassem a trabalhar corretamente e em grande quantidade, se se comportassem segundo as regras dos outros sem questionar demasiado o “establishment”, os que tinham em particularmente mais “experiência”, seriam assim reconhecidos, promovidos, e teriam oportunidades para crescer como profissionais e fazer carreira na área que quisessem…. Tal e qual como na Escola e na Universidade: teriam boas notas, e as boas notas seriam baseadas em critérios conhecidos por todos. As semanas, os meses e por vezes os anos foram-se passando e com esse passar também se foram então dando conta, por vezes tarde demais, que para ser reconhecidas, para progredir, para crescer, não bastava apenas trabalhar muito e bem, como nos tempos de estudante. Era igual- mente necessário tornarem-se mestres … das regras informais do seu meio laboral! Regras estas que, por serem informais, são muitas vezes difíceis de qualificar e quantificar. Regras essas que são desconhecidas por certos grupos historicamente sob representados na sociedade, na economia, no poder, porque não foram por elas estabelecidas. Regras estas que, ainda hoje, são o status quo da maior parte da sociedade, da política e das empresas pequenas, médias, e grandes.

Muitos são os que questionam esses modelos hoje, essas regras, essas realidades, por já não se encaixarem na ambição de diversidade e inclusão da gestão das organizações modernas do século XXI.

Os valores que as empresas querem promover dizem todo o seu contrário tanto em marketing de recrutamento como nas comunicações inter- nas dos recursos humanos e dos líderes. Mas todos esses discursos continuam a vir de cima para baixo, e até reforçados com frequência através de muita formação contínua e obrigatória, mas nas ações e no concreto, as promoções, os aumentos de salário, as oportunidades, e a inclusão de quem é diferente, continuam a ser um mistério para a grande maioria e na realidade, continuam a beneficiar ainda só algumas minorias. Minorias essas que parecem ter uma mala cheia de ferramentas que sabem combinar com habilidade e vão bem para além do conceito de trabalho árduo.

Então, como é que podemos mudar o status quo?

Como qualquer jogo, o primeiro passo é mesmo conhecer as regras, para de seguida saber reconhecê-las e um dia, por fim, poder dominá-las. Isso não quer dizer mudar quem se é, nem os seus valores, nem os seus princípios. Isso significa apenas tornar-se adulto, ganhar maturidade e deixar a ingenuidade da infância para trás.

E para isso, precisamos de novas ferramentas, aquelas famosas soft skills, que de soft pouco têm e que de hard abundam, porque não só devemos fazer muita introspeção, como devemos desconstruir muitos preconceitos enraizados desde a nossa infância, e por fim, aceitar que entre o que nos é dito e o que realmente acontece, existe um mar por vezes bem grande a navegar.

Mas que ferramentas são então essas e como abordá-las? A autovalorizarão, a gestão
do nosso tempo, o estabelecimento de limites, o networking, a capacidade de risco, a negociação, os jogos políticos, os conflitos de interesse, são alguns exemplos. Falemos hoje de, talvez a mais difícil para muitas de nós: a autovalorização. Porque nos custa tanto?

Para já muitas das vezes não sabemos no que realmente somos boas, em particular em sociedades ainda tradicionais como a nossa, em que se pode e deve ser sempre melhor, e o ser bom é o mínimo aceitável em notas dadas por autoridades estabelecidas, e muitas vezes o que conta é a quantidade de informação que conseguimos reter, e conseguimos, com muito esforço demonstrar em testes e exames. A isso junta-se que historicamente, e sobretudo para as mulheres e outros grupos crescidos á margem do poder, ou até culturalmente, fomos condicionadas a não nos gabarmos, a não sobressair do grupo, a não falar sem que nos dessem a palavra.

Fomos levadas a acreditar que o sucesso no percurso académico significava automaticamente sucesso na carreira. E por fim, alguns grupos de pessoas continuam a ser julgados muito mais duramente do que outros, especialmente se falharem. O João se falhou, é o João que falhou, ponto, não se acusam todos os homens pela falha do João. Mas se a Maria falhar, é “porque temos políticas que favorecem as mulheres, é porque são mais fracas, é porque são demasiado emotivas, é o que dá pôr uma mulher naquele cargo”, enfim, são as mulheres que falham como grupo.

Por fim, confundimos o conceito de humildade, qualidade prezada por todos que nos permite fazer introspeção, com o conceito de modéstia, ligada á valorização das nossas habilidades.

Por isso digo sempre: podemos ser humildes mas não temos de ser modestas, sobre- tudo quando se trata de pedir um aumento, uma promoção ou uma oportunidade.

Então como ultrapassar esse desconforto com a autovalorização?

Pequenos passos como estar atenta e anotar as nossas conquistas: o que se fez, entregou, organizou, apresentou, partilhou. Para quem começa este caminho do autorreconhecimento, que pense nisso como uma forma de dar visibilidade não só a si própria, mas indiretamente também à equipa, porque se falarmos do que conquistámos com a nossa equipa, também os estamos a valorizar (mas atenção ás mulheres que tendem sempre a achar que não têm liderança e que tudo é sempre só graças aos outros!).

Partilhem resultados factuais, úteis, idealmente com métricas associadas. Para todos nós que pensamos mais nos outros do que em nós, então pensemos em como podemos partilhar os nossos resultados, os nossos conhecimentos, a nossa experiência, e assim beneficiar os outros que podem aprender connosco?

Como resumir os nossos resultados, sobretudo quando achamos “normal, e que só estamos a fazer o nosso trabalho”? Aqui vão algumas dicas. Com que frequência? Tomem nota do feedback assim que o receberem, especialmente se for feedback verbal. Guardem essas informações num ficheiro para depois as usar nas reuniões de avaliação com as chefias. Se é algo de que se orgulham no momento, partilhem assim que puderem com um “sabiam que isto teve o seguinte impacto?”.

Que formato? Estruturem a informação duma forma que funcione para vós: “quem disse o quê e quando”, mas atenção, o que escrever ou partilhar tem de ser útil e de fácil absorção pelo leitor. Daí a importância dos factos e das métricas. E idealmente realçem o impacto. E para as nossas leitoras: lembrem-se de que quem vos vai ler ou ouvir, não quer um romance dos vossos sentimentos, mas resultados apresentados de maneira que possam digerir rapidamente a informação e passá-la a outros.

Que conteúdo? Mantenham todos os feedbacks, tanto positivos como os outros, todos construtivos para áreas de desenvolvimento. Não tenham medo de resumir coisas que não correram tão bem, mas usem isso para identificar coisas que poderiam fazer de maneira diferente numa próxima vez. Não tenham medo de pedir esclarecimentos se não perceberem o que foi dito.

A quem pedir? Colegas, clientes, parceiros, começando com aqueles com quem nos sentimos mais confortáveis. Com perguntas abertas e fechadas. Mas isso não é o trabalho das nossas chefias, saber o que estamos a fazer e como perguntam alguns?

A isto eu respondo: se um professor só sabe o que um aluno aprendeu quando apresenta resultados em testes ou exames, como é que um chefe é suposto adivinhar o que fizemos, como o fizemos e o impacto que isso teve … a não ser que seja um “micro manager” (o que ninguém quer!)? Muitas vezes diabolizamos as chefias e os gestores de topo, mas era bom que as pessoas vissem um chefe como um advogado: será tão bom a defender a nossa causa quanto as informações que lhe fornecermos. Por isso, é importante aprender a gerir as nossas chefias, até porque como nós, são humanos, têm percursos diferentes dos nossos, histórias e experiências que muitas das vezes desconhecemos. Então o meu conselho é sejam proativas: conheçam as vossas chefias, perguntem lhes o seu estilo de trabalho, organizem reuniões regulares, façam perguntas, documentem o que concordaram etc ou seja, passem a controlar a relação em vez de serem controlados.

E para além das chefias, com quem mais nos devemos valorizar?

Conversas informais e formais, em conferencias, reuniões, eventos, o que não faltam
por aí são oportunidades de networking e encontrarmos pessoas que nos possam ser úteis no curto ou longo prazo. É essencial diversificar as nossas oportunidades de crescimento e mudança, por isso não podemos só contar com as nossas chefias diretas, sobretudo se quisermos sair do modelo tradicionalmente hierárquico e patriarcal. Também devemos trabalhar os nosso perfis digitais como o LinkedIn onde é essencial saber escrever de maneira concisa e amor próprio sobre as nossas experiência e a pessoa que somos.

Então mas para quem é mais tímida, introvertido ou simplesmente sem experiência no aspeto social?

A melhor dica que posso oferecer, é praticarem uma introdução dum minuto, e depois aprenderem a fazer perguntas, a mostrar interesse pelo outro, a procurar pontos comuns com o vosso interlocutor. Preparem-se sempre que forem para uma reunião ou evento: quem estará presente, qual é o assunto, qual é o contexto. Preparação na gestão das nossas carreiras é 90% do trabalho, seja para pedir um aumento, seja para pedir uma promoção, seja para encontrar uma nova oportunidade. Isso significa muita autoavaliação, mas atenção ao síndrome da impostora!

Em conclusão, porque é que a autovalorizarão é a primeira ferramenta a desenvolver? Primeiro, ajuda-nos a destacarmo-nos no contexto repleto de informação e movimentado em que vivemos. Não é que as pessoas não se importem connosco, e não é que as nossas conquistas não sejam dignas de reconhecimento; ás vezes, e muitas vezes, é apenas porque as pessoas são dispersadas por tantos outros assuntos. Segundo, porque nos tornam mais atraentes para o merca- do laboral. Os recrutadores, nomeadamente, precisam de saber quem nós somos, o valor que temos para oferecer para a organização, e precisam de se lembrar de quem somos por entre tantos outros com quem contactam.

E finalmente, solidifica o nosso valor e o dos outros. O nosso trabalho é valioso. Ao partilhar os nossos resultados com os outros, reforçamos o nosso valor de forma irrefutável e se soubermos valorizar-mo nos, também saberemos valorizar a nossa equipa, o nosso departamento, a nossa empresa. A autovalorizarão não é só sobre nós próprios, trata-se também de trazer as nossas competências para ajudar os outros.

Tudo isto requer trabalho, esforço e sair da nossa zona de conforto, a sós certamente, mas como sou uma fã incondicional da “união faz a força”, aconselho a todas de se juntarem. Por exemplo, porque não criarem grupos internos de colegas de apoio, o conceito anglo saxónico dos “Employee networks”, onde se criam espaços de confiança e auto ajuda para aprender estas regras, estas ferramentas, debatê-las e … ainda alargarmos o nosso network!
Auto-valorização: sim ou não? Claro que sim, e neste mês do Amor então, toca a trabalhar no amor-próprio e na nossa auto-valorização!