Liderar com Propósito na Cooperação Internacional

Ana Gaspar Nunes DIRETORA EXECUTIVA E VICE-PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DA ONGD VIDA

Entre picadas abertas no mato africano e decisões estratégicas em Almada, Ana Gaspar Nunes construiu uma liderança que se mede não em números, mas em vidas transformadas. À frente da ONGD VIDA, lidera com escuta, presença e compromisso, num setor onde o tempo é tão valioso quanto a esperança.

“Não vos trazemos nada, vimos trabalhar convosco.” A frase é de Luz Vasconcelos e Souza, fundadora da ONGD VIDA, e ecoa como um mantra na voz de Ana Gaspar Nunes. Desde 1997, quando pisou pela primeira vez o solo cabo-verdiano em missão, Ana tem vivido a cooperação internacional como um exercício de humildade, escuta e transformação. “Uma coisa é estarmos sentadas na secretária a escrever projetos, outra é estarmos no terreno com as comunidades a viver o seu dia- a-dia”, recorda.

Licenciada em Ciências do Desenvolvimento e Cooperação Internacional, Ana reconhece que foi o percurso pessoal e não apenas académico que moldou a líder que é hoje. “A formação despertou a minha curiosidade pelo continente africano, mas foi o estágio curricular que definiu a minha orientação profissional. A primeira missão em Cabo Verde foi decisiva.” Desde então, nunca mais deixou de estar com as comunidades, de viver a realidade que quer transformar.

Os Princípios que Sustentam a Liderança na VIDA

Na ONGD VIDA, os projetos não nascem de gabinetes, mas da escuta ativa das comunidades. Ana fala com paixão dos cinco princípios que orientam a organização: Pessoa, Humanidade, Realidade, Responsabilidade e Permanência. “A Pessoa, enquanto ser único, irrepetível e irredutível, com a consciência de que é Pessoa.” Recorda o testemunho de um homem da aldeia de Djabula, onde a VIDA abriu 30 km de picada para levar a estrada à comunidade: “Eu acordava todos os dias e ia capinar de qualquer maneira… Eu era um ‘animal’, agora sou uma pessoa.”

Este despertar da consciência é, para Ana, o verdadeiro impacto da cooperação. “Quantos de nós, na corrida do dia-a-dia, atravessamos este processo de autoconhecimento e de nos reconhecermos enquanto Pessoas livres?” A Humanidade, diz, é um dos princípios que mais a preocupa: “Vemos cada vez mais pessoas e menos Humanidade.” A realidade exige que os projetos respondam às necessidades identificadas pelas próprias comunidades, e não às perceções externas. Já a responsabilidade e a permanência caminham juntas: “Devemos atuar como parte responsável na melhoria das condições de vida das pessoas e comunidades e não como mero dador de recursos.”

Liderar Equipas em Territórios Distintos

Moçambique e Guiné-Bissau são os dois países onde a VIDA tem presença contínua há mais de 30 anos. Gerir equipas em contextos tão distintos exige mais do que coordenação, exige partilha. “Somos uma organização participativa. Apesar de existir uma hierarquia formal, todas as pessoas da equipa são chamadas a participar na construção ativa do trabalho da VIDA.” Ana acredita que a liderança passa por delegar, responsabilizar e escutar. “Quando as pessoas percebem que o seu papel é muito mais do que executar o que lhes é dito, que devem participar, apropriar-se, torna-se mais fácil esta gestão.” O maior desafio? A sustentabilidade. “Assegurar a continuidade dos projetos sem pôr em causa os princípios e valores da organização é o mais desafiante e felizmente temos conseguido fazê-lo.”

Ser Mulher e Líder na Cooperação

A liderança feminina em organizações não-governamentais ainda enfrenta barreiras. Ana não hesita em reconhecer os desafios: “A complexidade e profissionalismo que cada projeto exige é um desafio diário. Apesar de toda a planificação, o grande desafio nestes contextos é a gestão e resolução dos imprevistos.” Mas é na angariação de fundos que se encontra o maior obstáculo: “O Desenvolvimento requer tempo, o que nos leva à necessidade de ter projetos integrados que consigam ir respondendo ao compromisso assumido com as comunidades.”

Comunicar esse trabalho ao público e aos financiadores é outro desafio: “Ensinar a pescar não é a mesma coisa que dar o peixe, que é mais visível e mediático.” A partida precoce da fundadora da VIDA, em 2012, foi um momento marcante: “Deixou um legado que não poderia ser parado. Requereu uma responsabilidade enorme e fez-me compreender que todo o meu percurso será sempre uma aprendizagem contínua.”

Sustentabilidade e Justiça Social: Projetos Integrados

A VIDA não responde apenas à urgência, constrói soluções duradouras. Ana explica o conceito de “projetos integrados”: “Projetos que abrangem diferentes áreas e atividades complementares, a par de uma rede de atores institucionais locais e parceiros internacionais.”

Um exemplo concreto é a Linha de Saúde 24h na Guiné-Bissau: “Complementa e apoia o frágil Sistema Nacional de Saúde, providenciando aconselhamento clínico, triagem e encaminhamento através de técnicos de saúde disponíveis 24 horas por dia e 365 dias por ano.” Este serviço funciona em estreita colaboração com o Ministério da Saúde Pública, Proteção Civil e Polícia, uma rede que espelha o compromisso com a transformação sustentável.

O Empoderamento Feminino no Centro da Mudança

Nos países onde a VIDA atua, o contexto social e cultural limita frequentemente a participação ativa das mulheres. Mas Ana e a sua equipa têm procurado inverter essa realidade. “Muitos projetos são dirigidos às mulheres, enquanto figuras centrais na economia destes países. A capacitação tem permitido um empoderamento das mulheres, ao fornecer-lhes conhecimento e ferramentas.”

Um dos projetos mais marcantes foi a exposição “Fotografar é dar Vida”, resultado de uma atividade de fotografia participativa com mulheres guineenses de etnia felupe: “Utilizaram a fotografia como forma de dar voz às suas reflexões diárias: O que é ser mãe? O que é necessário para garantir a saúde?”

A análise conjunta das imagens permitiu-lhes ver o seu dia-a-dia de outra perspetiva e refletir sobre isso, contribuindo para pequenas mudanças na sua vida. Para quem deseja seguir uma carreira na cooperação internacional, Ana deixa conselhos claros e sentidos: “Apesar de ser um trabalho muito gratificante e com impacto direto na vida das pessoas, não deixa de ser bastante complexo e exigente.” E acrescenta: “Humanidade, resiliência, dedicação, saber ouvir e estar com o Outro são características para quem quer liderar no setor da Cooperação para o Desenvolvimento.”

Ana Gaspar Nunes não lidera para ser vista. Lidera para que outros se vejam. A sua liderança é feita de presença, escuta e compromisso. E é nesse equilíbrio entre o terreno e a estratégia, entre o coração e a razão, que constrói uma cooperação que não assiste, transforma.