Edite Nasceu no Porto, num hospital público com uma fachada de pedras escurecidas, num dia de final de outono, a fechar 1980. A minha mãe diz que me reconheceu como sua filha quando suspirei. Haveria de suspirar muito, ao longo da vida, por ter aprendido que o suspiro recarrega o ar e marca uma pausa.
Fomos uma equipa de duas ao longo do meu crescimento, e depois a minha mãe começou a suspirar mais — e mais ao longe — pelas aventuras em que me via metida: o inter-rail sem telemóvel, o Couch Surfing pela Europa toda; as viagens aos Estados Unidos sem trajetos definidos; a mudança de país para ir fazer o Master a Barcelona; o tempo de Master que se alargou por 4 anos; as formações tão diferentes em que me via inscrita.
E os suspiros continuaram, sempre, no testemunhar do meu trajeto ao longo dos anos: as relações com amigos de todo o lado que iam pintando o caminho; a vida que passou por quatro países; o caminho sempre empreendedor com toda a incerteza e imprevisibilidade associadas; o primeiro neto que lhe chegou quando já não o esperava, o segundo que nasceu na sala da casa onde, dois dias depois, o visitou… Os suspiros são também surpresa. Surpresa de tudo o que pode caber numa vida. E esta é a razão pela qual agora, enquanto escrevo, eu própria suspiro.
Responder a entrevistas destas tem o poder de nos pôr a narrar o trajeto e a dar-lhe o sentido que os passos soltos e espontâneos foram pintando à mercê dos dias.
Tenho a impressão de que seria esse suspiro que definiria melhor este trajeto em geral: a capacidade de ganhar novo ar e novo lanço e de fazer escolhas que fazem sentido no momento, mais do que no contexto previsível ou expectável onde se pudessem encaixar. Podia dizer que este trajeto é uma manta de retalhos, pelas cores diferentes que sempre teve, mas vejo-o mais como uma integração cromática com sentido, onde até os pigmentos mais fluorescentes compõem um todo dentro da mesma gama.
Formei-me em Psicologia, na área da Saúde, no Porto. Fiz o meu estágio no Hospital de S. João e acompanhava doentes com enfarte agudo do miocárdio na componente mais psicológica da sua recuperação. O que teria esse começo a ver com este poético com vistas para um jardim da Invicta?
É esse o poder do suspiro: fazer-nos acreditar na não linearidade do trajeto, libertar nos para o criarmos ao sabor mais das vontades do que das obrigações.
Talvez eu me possa narrar, de forma simples, como uma licenciada em Psicologia que inventou uma forma de a implementar juntando as suas paixões e os seus interesses (a Criatividade, o Florescimento Humano, a Expressão). Foi, afinal isso que eu fiz no projeto que criei em 2011, a THINKING-BIG, através do qual dou workshops, conferências corporativas e faço consultoria e mentoria individual.
Mas seria sempre pouco. Seria pouco porque deixaria de lado os anos em que, no começo dos 20’s, por curiosidade e vontade de experimentar, fiz dois programas de rádio e dei a voz a anúncios de papelarias e restaurantes locais.
Seria pouco porque deixaria de lado o ano e meio em que trabalhei para uma Consultoria em Barcelona, antes dos meus 30’s, criando e coordenando o seu departamento de formação e propondo “formaciones em calcetines” (formações em meias) para diretores de banco e chefes de departamento de empresas catalãs.
Seria pouco porque deixaria de lado os inquéritos porta a porta em que gastava horas e horas durante a licenciatura e esqueceria o tempo passado na reprografia da faculdade a fotocopiar apontamentos e sebentas até altas horas para pagar um curso em Corpo e Voz.
Também seria pouco porque não incluiria os congressos internacionais todos — cada um mais improvável do que o outro — em que fui apresentar os resultados da minha tese de mestrado ou a minha prática a trabalhar com grupos ou a minha forma de integrar o corpo expressivo no contexto corporativo ou a ligar a liderança à autenticidade do chefe sueco que acompanhei durante um mês trabalhando ao seu lado na cozinha.
Será sempre pouco apresentarmo-nos pelo que fizemos profissionalmente, pelo que estudámos e pelo que conseguimos laboralmente.
É preciso alargar o espetro à narração do tempo e das atividades que fazemos, por exemplo, com os nossos filhos. Contar que vestimos toda a gente de impermeável e galochas para ir explorar as poças lamacentas; contar que se aceita esfolar os joelhos e arranhar as pernas das crianças por as levar ao meio do campo e aos moinhos de água; mostrar a mesa de madeira da sala rabiscada de marcador que não sai e saber que se teve responsabilidade nisso.
Da mesma forma que podemos alargar a narração aos passos em deriva que se deu em viagens sem maior objetivo do que só estar; ao assalto que ocorreu numa casa onde se dormia há um mês num país estrangeiro; à solidão sentida na adaptação à vida noutros países; aos workshops em Teatro Físico em que se explorou o poder expressivo do corpo, ao prazer de criar projetos que vêm à luz como cogumelos frescos: podcasts, entrevistas, artigos escritos, colaborações artísticas…
É esse o trajeto completo, o lado humano de tudo, um pedaço da aventura de estar vivo e liderar, numa mistura frequente de estilos, a vida que se vai desenhando para si: do laissez-faire dos dias de freelancer independente um pouco à nora sem projetos, ao democrático que participa numa equipa familiar, ao autoritário que às vezes se autoexige mais do que o que humanamente pode dar. É esta parte do liderar(-se) no feminino, neste feminino. Tem sido esta a constante aprendizagem e reaprendizagem, de papel em papel, de lugar em lugar.
Às vezes desempregada numa grande cidade, aproveitando a vibrante e ampla oferta de atividades para se enriquecer avidamente, às vezes uma empreendedora que começa um projeto numa só tarde diante de um computador e de uma amiga nos Estados Unidos; às vezes uma mãe a amamentar enquanto dá uma conferência online para profissionais brasileiros… Plurais nos papeis, diversos nas experiências.
E é este autoliderar que vai seguindo interesses e vontades, entusiasmos e curiosidades, e que sustém momentaneamente o suspiro e se diz: aqui cheguei. Para onde irei?