Mónica Guerreiro, Diretora do Coliseu Porto Ageas.
Aos 40 anos, completa agora 25 ao serviço da cultura, primeiro no jornalismo e depois em diferentes funções técnicas e de chefia. É a primeira mulher e a mais jovem presidente da história do Coliseu Porto Ageas, a mítica casa de espetáculos do Norte, que em 2021 celebra 80 anos. Apaixonada pelas artes e pela riqueza que estas trazem às vivências de cada um, defende que os portugueses devem apoiar mais os profissionais da cultura e que isso passa pelo reconhecimento de que “sem dança, sem música, sem cultura visual ou cinematográfica, sem literatura ou sem teatro, reduzimos a nossa vida a tarefas e ro- tinas. Atravessar os imaginários que a arte nos proporciona é como experimentar muitas vidas, equivale a adiar a morte.”
Quando era pequena, quis ser historiadora, porque gostava de escrever, mas algo a puxava para as histórias “reais”. A proximidade com o mundo da dança e a vontade de contribuir para a historiografia desta arte – que, de tão efémera, resiste a ser consagrada nos livros de história – levou-a a iniciar-se como crítica de dança (no então jornal Blitz), licenciar-se em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa e a dedicar-se anos de investigação sobre a dança feita em Portugal, que deram, até agora, dois livros: a biografia “Olga Roriz” (Assírio e Alvim, 2007) e “O Essencial sobre a Companhia Nacional de Bailado” (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2017). Estará planeado para 2027 um terceiro livro?: “Não sei se acerto no ano (risos)! Entretanto tive um filho e plantei uma romãzeira, parece que já fiz o check. Veremos.”
“É importante que comece por dizer que não me considero escritora e que não tenho talento para a criação ficcional. Atrai-me o ofício de historiadora sem que tão-pouco o seja. Acho que aquilo que faço mesmo é reportagem. São mais curtas ou mais longas, consoante o suporte, mas foi no que me formei e por onde comecei: fazer perguntas e contar histórias (reais). Se a vida não tem tido outros planos, talvez ainda aí estivesse, a escrever crónicas, reportagens, entrevistas, críticas. Gosto do ritmo e da acutilância das redações dos jornais, onde se vibra freneticamente com uma caixa que poucas horas depois estará a forrar o caixote do lixo.”
Contrariamente ao que se possa pensar, a aproximação à dança não foi pela prática, mas na qualidade de espectadora. “Comecei a ver dança muito cedo, por minha iniciativa, pois não conhecia ninguém que dançasse ou que gostasse de assistir e tivesse hábito de frequentar espetáculos. Mas a curiosidade era forte e os meus pais e irmãos sempre me incentivaram a seguir os meus interesses, mesmo quando – e era o caso – fossem coisas que não entendiam.” Nascida em Cascais em 1981, a mais nova de quatro irmãos, Mónica Guerreiro lamenta “não ter lido mais livros e visto mais filmes e mais espetáculos quando era nova e o tempo parecia infinito” e confessa ter a sensação de que nunca vai “saciar essa sede de conhecimento, porque há sempre tanto para aprender com os criadores… Até podemos divertir-nos, mas para mim o consumo cultural não é essencialmente entretenimento. É confronto, é descoberta, é abismo, é revelação. São sensações que mais nada nos traz. Para outras pessoas, essa força pode vir das viagens, ou das drogas, não sei. Para mim, não há nada que chegue à intensidade de assistir a certas criações. Só para referir um exemplo, de uma coreógrafa da minha geração, nascida em Cabo Verde e que trabalha a partir de Lisboa, Marlene Monteiro Freitas. Peças como “De marfim e carne – As estátuas também sofrem”, vejo e revejo sempre que posso. São simplesmente sublimes.”
Do Blitz, onde publicou semanalmente entre 1996 e 2003 artigos e críticas de dança, teatro e música – crendo, com a sua escrita, estimular a massa crítica em torno das artes emergentes, especialmente as made in Portugal – transitou, em 2004, para a Direção-Geral das Artes, entidade tutelada pelo Ministério da Cultura, responsável pelas políticas de financiamento às artes independentes. “O meu conhecimento do terreno, acumulado na década anterior ao serviço do jornal, foi um enorme benefício. Eu já conhecia praticamente todos os festivais que se faziam, o trabalho da maior parte das companhias, estava habituada a sair e percorrer o país de Norte a Sul. Portanto, integrar a equipa que aconselhava relativamente a decisões de financiamento, pareceu-me um caminho natural e saudável. Era a oportunidade de ajudar a dar visibilidade a criadores de linguagem mais experimental, que tinham dificuldade em encaixar nos formulários; de criar categorias de concursos que até então não existiam; de contribuir para que a atribuição de subvenções estatais fosse menos um trabalho feito a partir dos gabinetes. Aos poucos, estas ideias foram-se estabelecendo. A DGArtes evoluiu imenso. E deve continuar a evoluir, só assim é que estará à altura do dinamismo do sector para o qual trabalha.”
Foi naquele organismo que pela primeira vez a convidaram a assumir funções dirigentes, o que encarou “com responsabilidade e sentido de missão”. Ainda vê como desigual o acesso e reconhecimento das mulheres à progressão profissional, embora no Estado vigore a igualdade de tratamento e de salário e seja proibida a discriminação. “No privado, há muito menos escrutínio, pelo que as práticas de discriminação são menos conhecidas, fiscalizadas, corrigidas e punidas. Ainda temos uma imensa luta a fazer pelos direitos humanos neste país.”
Ao longo da sua carreira profissional no sector público, tem dirigido equipas de escala reduzida, de 15 a 30 pessoas – caso do Coliseu Porto Ageas, com uma equipa de 15 elementos, ou da Direção-Geral das Artes (onde esteve como Diretora de Serviços de Apoio às Artes entre 2011 e 2014 e como Subdiretora-Geral em 2015) – como equipas muito numerosas, como no município do Porto, onde entre 2016 e 2019 esteve como Diretora Municipal de Cultura, uma área funcional com 320 trabalhadores (a segunda maior da autarquia), várias divisões e chefias intermédias. “Para mim, foi sempre importante saber o nome de cada pessoa e um pouco daquilo que fazia, mesmo no caso das profissões mais especializadas. Perguntar-lhes como fazem e se gostam daquilo com que se ocupam. Penso que a minha mais-valia, enquanto firme advogada do trabalho de equipa, é procurar os equilíbrios necessários à manutenção de um ambiente de trabalho favorável à promoção e afirmação dos talentos de cada um, enquanto se aprofunda o compromisso com o serviço público. Porque nunca podemos perder o foco de que não estamos nisto para engordar os bolsos de um acionista, mas sim para construir uma sociedade, um país, mais justo, desenvolvido, paritário, solidário. Para fortalecer o que é bem comum e democratizar o acesso ao melhor serviço possível.”
A este respeito, não deixa de refletir sobre as dificuldades da gestão de recursos humanos no quadro do funcionalismo público: “Gerir pessoas no contexto da administração pública é particularmente desafiante, por um lado porque os sistemas de avaliação de desempenho são padronizados e altamente burocráticos, com difícil aplicabilidade no sector da cultura, em que devem ser valorizadas aquisições de competências para lá do conteúdo funcional do trabalhador, articulando aspetos qualitativos que normalmente nestes sistemas não são equacionados; e, por outro lado, porque as balizas de progressão e recompensa por desempenhos acima da média são tipificadas, condicionadas a numerus clausus algo arbitrários e pouco estimulantes enquanto ferramenta para trabalhar motivação.”
Agora, quando completa um ano de presidência no Coliseu Porto Ageas, considera que ter começado em 2020 no contexto da pandemia de Covid-19, que tantos obstáculos impôs, trouxe alguns ensinamentos. “Penso que a flexibilização da prestação do trabalho à distância, a redução da pegada ecológica pelo decréscimo das viagens, e a maior percentagem de tempo passado em família, são lições a tirar destes anos. No meu caso, que tive um filho no começo de 2020, o teletrabalho permitiu-me acompanhar o seu crescimento de uma forma que não imaginava, e certamente não teria sido assim se o contexto tivesse sido outro. Não sou defensora da abolição dos escritórios e das reuniões presenciais, que são momentos de encontro essenciais para a boa manutenção das táticas de trabalho em equipa. Mas agrada-me a faculdade de configurar o trabalho pela melhor conveniência para as várias partes e acho que o sector cultural pratica horários e regimes de funcionamento que se coadunam bem com essa flexibilidade. Anteriormente, pelo menos no sector público, o tópico teletrabalho gerava desconfiança e resistência, mesmo entre quem tinha o discurso da conciliação entre vida profissional e familiar.”
Ter sido convidada para dirigir o Coliseu justamente aquando do encerramento dos equipamentos culturais teve também a vantagem de lhe permitir algum recuo para estudar a história da casa, prestes a completar 80 anos. “Percebi, falando com as pessoas, que havia alguma nostalgia por projetos que as tinham marcado e que foram descontinuados, como os ciclos de Concertos Promenade. São espetáculos de música ao vivo, comentados, para famílias e públicos jovens, mensalmente ao domingo de manhã, com uma disposição lúdica mas a mesma exigência, para uma educação musical de qualidade desde a pequena idade. Pareceu-me importante pegar nesta herança e reati- vá-los para uma nova geração. Chamámos-lhes “Concertos Promenade 2.0” porque pensámos neste ciclo como um grande sistema operativo que conhece aqui uma nova versão, com atualizações, mas que ainda corre no mesmo hardware, que é a estupenda sala principal do Coliseu.”
Outra das suas apostas em ano de aniversário redondo é a ópera: “Cavalleria Rusticana” e “Così fan tutte” são os títulos das produções de ópera a que assistiremos em 2021. “Só conseguimos investir nestes projetos em contexto Covid-19 porque entre os associados do Coliseu está a Câmara Municipal do Porto e o Ministério da Cultura, que se têm mostrado parceiros solidários num quadro de adversidade.”
Com a ajuda do patrocinador, Grupo Ageas Portugal, que se associou ao Coliseu em 2018, e que reafirmou a aposta para mais três anos, foi possível organizar um espetáculo de Circo original em plena pandemia, uma aventura que se prepara para iniciar novamente: “A única coisa que neste momento se pode dizer sobre o Circo Coliseu de 2021 é que vai voltar a surpreender. Esperemos voltar a trabalhar como antes, embora em 2020 tenhamos conseguido criar alternativas às restrições (como o streaming e a passagem para os cinemas NOS), e é importante continuar a alargar o público (como fa- remos este Verão, em que levaremos o Circo Coliseu em digressão a Arcos de Valdevez, Cabeceiras de Basto, Cinfães, Marco de Canaveses, Mondim de Basto, Porto e Santo Tirso, sempre ao ar livre e com entrada gratuita). Mas o Circo participado ao vivo nesta arena do Coliseu, como se faz há 80 anos, tem um sabor inesquecível e é esse que procuraremos recriar, inventando-o novamente.”