Lídia Neves, Licenciada em Direito pela Universidade Católica de Lisboa, com mais de 15 anos de experiência, é Advogada da Miranda & Associados onde exerce a sua atividade predominantemente nos diversos ramos da Propriedade Intelectual e Tecnologias da Informação. Para além de ter concluído uma Pós-Graduação em Direito da Propriedade Industrial pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, obteve também o grau de Mestre em Direito pela Universidade Católica de Lisboa. É Agente Oficial de Propriedade Industrial junto do Instituto Nacional de Propriedade Industrial bem como European Trademark and Design Attorney junto do European Union Intellectual Property Office. É ainda árbitra no ARBITRARE – Centro de Arbitragem de Propriedade Industrial, Nomes de Domínios, Firmas e Denominações, Membro da Direção da Federação de Advogados de Língua Portuguesa (FALP) e da Associação ProPública – Direito e Cidadania e Embaixadora da Humanity Summit.
A desigualdade de género é uma realidade tão antiga quanto a luta contra ela. O movimento de luta pela igualdade de género internacionalizou-se com a instituição do dia 8 de março de 1910. Este movimento tem mais de cem anos e, nas últimas décadas, têm surgido vários movimentos e iniciativas de luta pela equidade de género, mas o avanço tem sido lento.
Na verdade, apesar de mais de 50% da população mundial ser constituída por mulheres, apenas menos de 10% ocupam lugares de topo no mundo corporativo. No que se refere a cargos de direção a percentagem aumenta, mas, mesmo assim, está abaixo dos 20%. No caso de Portugal, de acordo com o Fórum de Gestão de Dados de Investigação, em 2020, apenas 14% das mulheres ocupavam cargos executivos e somente 6% pertenciam a Conselhos de Administração.
Se dermos uns passos até ao passado, na indústria automóvel, até 2011, os testes de colisão automóvel eram feitos como manequins com as medidas do homem médio. Por esse motivo, os cintos de segurança não tinham em consideração a forma do corpo feminino ou das crianças, o que causava um risco de ferimentos em acidentes de automóvel superior aos homens e um risco de morte maior de cerca de 17%. Nas tecnologias móveis, assistentes virtuais como o Google Voice e o Apple Siri inicialmente respondiam menos frequentemente às perguntas das mulheres do que às dos homens devido ao facto de as bases de dados estarem concentradas com dados masculinos. No domínio bancário, uma concentração semelhante em sistemas de inteligência artificial resultou na concessão de linhas de crédito inferiores às mulheres apesar de mostrarem indicadores de solvência iguais ou superiores aos dos homens. No campo biomédico, no século passado, muitos dos testes clínicos eram baseados na hipótese de “homem branco de 70 Kg” servir como um bom representante médio da espécie humana, o que levou a que tivessem sido desenvolvidos vários medicamentos insuficientemente testados em mulheres. Em consequência, no final dos anos 90, cerca de 80% dos medicamentos tiveram de ser retirados do mercado americano por acarretarem maior risco de saúde para as mulheres.
A verdade é que, recuando no tempo, vemos a mulher como cuidadora, em comparação com o homem que era visto como o responsável pela tomada de decisões, pelo auferimento de rendimentos, o elo mais forte. Esta conotação foi sendo esbatida ao longo dos anos, mas o preconceito de género, etnicidade, atitudes culturais e a resistência à liderança feminina e a ambição são ainda fatores que têm ditado o papel e evolução da mulher. Durante alguns anos, era comum o uso da expressão “a primeira mulher” a atingir alguma coisa. Tínhamos notícias como a primeira mulher no exército ou espaço. Atualmente, as mulheres estão presentes em todas as esferas, profissões e atividades.
Há 60 anos, os percursos profissionais eram ditados em função do género, sendo que,
tradicionalmente, as mulheres tinham profissões como professoras primárias e enfermeiras. Atualmente, apesar de toda a evolução, o mercado de trabalho continua muito segregado. Há uma tradição nos papéis e nas profissões ocupadas por homens e mulheres. A título de exemplo, em Portugal, no início deste ano, estávamos perante taxas de feminização em atividades de saúde humana e apoio social na ordem dos 83,7% e na educação de 75,8%. Por oposição, está registada uma descida na percentagem de mulheres licenciadas nas áreas das tecnologias de informação e das engenharias. Em matéria de igualdade de género, de acordo com o índice do Instituto Europeu para a Igualdade de Género (EIGE), Portugal está a progredir mais rápido do que a média dos 27 países da União Europeia. Nos últimos dados deste índice referentes a 2021, Portugal ocupa o 15.º lugar. No entanto, a realidade mostra-nos que, apesar da igualdade formal alcançada, ainda persistem muitas desigualdades que penalizam as mulheres. E ao facto de ser mulher somam-se outros fatores de desigualdade. Basta pensar nos obstáculos que poderão ser colocados a uma mulher afrodescendente, a uma mulher emigrante, a uma mulher trans ou a uma mulher com deficiência.
Sabendo-se que, na esfera do trabalho e das organizações, existem desigualdades entre mulheres e homens, designadamente ao nível da desigualdade salarial. Com exceção da função pública, as mulheres, de um modo geral, têm um vencimento inferior ao dos homens. Por outro lado, as mulheres não só ganham menos que os homens como têm de trabalhar bastante mais para poder evoluir e se afirmar. Há igualmente uma tendência global no sentido de progressão das mulheres até a um determinado teto, não sendo geralmente as decisões finas tomadas por elas. As mulheres têm representação nos cargos de gestão nos vários setores de atividade, mas existe como “um teto de vidro” que as bloqueia.
Há ainda que fazer referência ao “Gender Pay Gap” entre homens e mulheres. Estima-se que globalmente as mulheres ganham menos 24% do que os homens com funções idênticas. No que respeita ao caso de Portugal, de acordo com as estatísticas referentes ao ano de 2021, as remunerações médias são sempre superiores nos homens em todos os níveis de qualificação e de habilitação, para todos os graus de antiguidade e em todos os grandes grupos profissionais.
Os dados demonstram, mais concretamente, que as mulheres recebem menos 14% a 17% comparativamente aos homens. Há, por isso, uma urgente necessidade de promover medidas e ações específicas contra a discriminação a que as mulheres são sujeitas. A crise sanitária veio acentuar ainda mais as desigualdades existentes, sendo reconhecido que as mulheres foram o grupo social mais impactado. Em Portugal, temos registado uma evolução nesta temática ao nível legislativo. Temos a Lei 62/2017 de 1 de agosto, que regula o regime de representação equilibrada entre homens e mulheres nos órgãos de administração e de fiscalização das entidades do setor público empresarial e de empresas cotadas em bolsa.
A Agenda 2030 da ONU vem convidar sociedades, governos e empresas a contribuírem para o cumprimento de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis (ODS) através de ações e planos de compromissos alinhados com as metas estabelecidas. Mais concretamente, através do ODS 5, denominado de “Igualdade de Género”, pretende-se, designadamente, acabar todas as formas de discriminação contra as mulheres e meninas; eliminar todas as formas e violência contra as mulheres e meninas nas esferas jurídicas e privadas, incluindo tráfico e exploração sexual e práticas nocivas; reconhecer e valorizar o trabalho de assistência doméstico não remunerado e a promoção da responsabilização partilhada dentro do lar; assegurar a participação plena e oportunidades na liderança e tomadas de decisões para mulheres na vida política, económica e pública; garantir o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva; conceder às mulheres direitos iguais no acesso a recursos económicos; aumentar o uso de tecnologias para promover o empoderamento das mulheres e adotar e fortalecer políticas
sólidas e legislação adequada para a promoção da igualdade de género e empoderamento da mulher em todos os níveis.
Em junho deste ano, foi alcançado um acordo histórico entre o Parlamento Europeu e
Comissão Europeia sobre a Diretiva europeia Women on Boards relativa à participação das mulheres nos conselhos de administração das sociedades cotadas em Bolsa. Trata-se de um verdadeiro marco na luta contra a discriminação baseada no género, tendo finalmente sido estabelecido que as mulheres devem ter acesso aos cargos de topo com a mesma representatividade dos homens. Sendo evidente a desproporção existente a este nível em toda a União Europeia. De acordo com os dados do Instituto Europeu para a Igualdade de Género (EIGE), as mulheres representam menos de 30% dos membros dos Conselhos de Administração e apenas 8% dos CEO das principais sociedades cotadas na Europa.
Quando confrontados estes números com o facto de, na União Europeia, as mulheres
constituírem atualmente 60% dos licenciados e já estarem em pé de igualdade com os homens em termos de representatividade na força laboral, facilmente se denota que estamos ainda perante uma cultura empresarial que diferencia em função do género quando se trata de decidir quem lidera de facto.
A Diretiva vem criar condições para mudar esta realidade definindo metas vinculativas com a previsão de penalizações em caso de incumprimento. Especificamente, foi estabelecido o objetivo de que, pelo menos 40% dos administradores não executivos das empresas sejam mulheres OU que 33% de todos os postos de direção sejam ocupados por mulheres. Estas metas terão de ser cumpridas pelas empesas até 2026. No entanto, notamos que as pequenas e médias empresas (PME) com menos de 249 trabalhadores ficam excluídas destas medidas.
Ora, de acordo com os dados da PORDATA referentes a 2020, 99% das empresas
portuguesas são PME, daí resultando que a grande maioria das empresas portuguesas não são abrangidas pela Diretiva. Este facto deverá ser objeto de enquadramento nacional em tempo oportuno. Isto porque de nada valerá uma Diretiva descontextualizada da realidade. Ressaltando-se que a Diretiva vem ainda apontar caminhos concretos para superar as atuais discrepâncias. A consciencialização nas escolas e nas universidades para os benefícios da promoção da igualdade de género nas empresas e a promoção de maior rotatividade nos conselhos de administração são alguns deles. Relativamente a este último ponto, o equilíbrio de género nos conselhos de administração é essencial pelos talentos que se aproveitam e pelas aptidões específicas que as mulheres trazem para estes cargos, sendo amplos os benefícios decorrentes da igualdade de género.
De apontar que o reforço da presença das mulheres nestes órgãos de decisão permitirá criar modelos que certamente inspirarão outros talentos femininos a procurarem afirmar-se nos vários setores de atividade, incluindo naqueles onde as mulheres ainda estão sub-
representadas. O que ajudará a combater assimetrias salariais que, mais tarde, se traduzirão em diferenças ao nível do valor das reformas.
Na economia global, estas diferenças resultam em prejuízos enormes. De acordo com um
estudo do McKinsey Global Institute, se todos os países conseguissem reduzir as assimetrias de participação das mulheres na economia a um ritmo idêntico ao país na sua região com melhores políticas de género, o Produto Interno Bruto (PIB) aumentaria globalmente cerca de 11%, ou seja, seriam adicionados à economia global 12 milhões de milhões de dólares em 2025. Num mundo ideal, se as mulheres participassem na economia de forma idêntica aos homens, seriam adicionados 28 milhões de milhões de dólares no PIB global.
O que está em causa é assegurar que os melhores, sejam homens ou mulheres, tenham
oportunidade idêntica de alcançarem os cargos mais altos. A França é atualmente o Estado-membro da União Europeia mais próximo do equilíbrio de género nos Conselhos de Administração, representando as mulheres 43% dos conselhos de administração das principais sociedades cotadas em bolsa. É essencial que este exemplo seja seguido pelos restantes países, incluindo por Portugal, garantindo-se a correção dos desequilíbrios atualmente existentes.
Está criado o contexto necessário para a implementação de medidas concretas. Entre outras medidas, deverá ser feita uma verdadeira aposta na educação, tendo as escolas e as instituições de ensino superior um papel muito relevante a desempenhar. Os líderes de
amanhã formam-se hoje. Para se atingir a ambicionada igualdade de género nos lugares de topo é preciso canalizar as jovens para a educação porque apenas a educação as poderá verdadeiramente libertar.